Sakamoto: Atacar Argentina com Oscar não é só deselegante, é não saber história

O diretor de Ainda Estou Aqui, Walter Salles, na cerimônia do Oscar 2025, discursando em microfone com estatueta nas mãos
O diretor de Ainda Estou Aqui, Walter Salles, na cerimônia do Oscar 2025 – Reprodução/TNT

O comentário deselegante de Ana Furtado ao entrevistar o ator Selton Mello após “Ainda Estou Aqui” receber o Oscar de Melhor Filme Internacional ao menos serviu para lembrar que as covardias dos períodos militares foram o tema dos primeiros filmes do Brasil e da Argentina premiados pela academia. Ou seja, o correto não é “Chupa, Argentina!”, mas “Golpe Nunca Mais na América Latina!”

Ambos os países tocaram nas suas feridas para levarem um Oscar para casa. Na Argentina, isso ocorreu três anos após o final da última ditadura civil-militar (1976 a 1983). No Brasil, 40 anos depois da redemocratização que pôs fim à ditadura de 1964 a 1985.

A “História Oficial” levou o Oscar de Melhor Filme Internacional em 1986. O filme de Luiz Puenzo conta a história de Alícia, uma professora da classe média alheia à violência causada pela ditadura em seu país. Após o retorno de uma amiga do exílio, ela começa a descobrir as histórias de mortes, desaparecimentos e adoções forçadas, levando-a a investigar a origem de sua própria filha adotiva. Sua busca é um retrato da sociedade naquele momento e da busca pela verdade.

O filme argentino trata da questão da ditadura sob a ótica da vida cotidiana, tal como a produção dirigida por Walter Salles. Não são filmes sobre guerrilheiros, ainda que estes também sejam necessários para entender a história, mas sobre mulheres fortes e suas famílias. Não são sobre o outro, mas sobre nós mesmos.

Trazem sutilmente a questão para os espectadores, sendo, por isso, mais eficazes em espalhar a mensagem que um filme engajado. Não ficam restritos às bolhas e podem atingir conservadores e jovens, que desconhecem sua história e, por isso, podem estar se condenando a repeti-la. E, por isso, são tão odiados pelos extremistas.

Já em 2010, a Argentina voltaria a ganhar um Oscar na mesma categoria com “O Segredo dos Seus Olhos”, de Juan José Campanella, estrelado pelo grande Ricardo Darín. Conta a história de um agente do Poder Judiciário aposentado que decide escrever um livro sobre um caso de estupro e assassinato que investigou, prometendo ajudar o marido da vítima a encontrar o culpado e garantir-lhe a prisão perpétua.

O filme se passa em dois cenários diferentes: o turbulento ano antes de começar a última ditadura, e o final da década de 1990, ainda com a dificuldade de punir agentes de Estado por seus crimes devido à vigência de leis de anistia da época.

Somos dois países que passaram pela mesma colonização ibérica e que foram castigados por duas violentas ditaduras, sendo que a do vizinho foi ainda mais carniceira que a nossa. A Argentina, ao contrário do Brasil, não optou apenas por investigar e trazer à tona o que aconteceu e compensar financeiramente as vítimas, mas mandou torturadores e ditadores para a cadeia.

Por exemplo, Jorge Videla, que governou a Argentina de 1976 a 1981, morreu na sua cela em 2013, aos 87 anos, onde cumpria prisão perpétua pelos crimes contra a humanidade que cometeu. Por aqui, os ditadores do período e seus asseclas não amargaram o xilindró. O que ajuda a explicar por que, 37 anos depois, fardados se uniram a civis para tentar um novo golpe de Estado.

Há uma troca intensa entre o cinema argentino e o brasileiro. Não é “Chupa, Argentina!”, mas “Viva, a Argentina!”, que ainda produziu recentemente o excelente “Argentina 1985”, que foi finalista do Oscar, mas não levou.

No dia em que percebemos que o povo da América Latina, seus desejos, tristezas, frustrações e, principalmente, esperanças, são parecidos, e que seus estúpidos ditadores e autocratas bebem da mesma água, talvez filmes como “Ainda Estou Aqui”, “A História Oficial”, “O Segredo dos Seus Olhos”, “Argentina 1985”, entre tantos outros, sejam apenas registros históricos de época e não avisos do que pode voltar a acontecer.

Publicado originalmente em UOL

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