Tétrico: dossiê de denúncias do Ruth Cardoso tem negligência médica, manipulação de indicadores e falta de equipamentos 

O jornal Página 3 recebeu um verdadeiro dossiê de denúncias do Hospital Municipal Ruth Cardoso e a fonte, que não será identificada, enviou provas e informações. 

Diante da gravidade das informações repassadas, a reportagem do jornal foi ao Ruth Cardoso apurar cada ponto denunciado com a diretora do hospital, Andressa Haddad, que confirmou todos os detalhes. 

Acompanhe:

Renovação de contrato com empresa negligente

Primeira denúncia: “É de conhecimento de todos, que o Ruth passou por um turbilhão de denúncias na maternidade e na ginecologia e obstetrícia. 

Os serviços médicos são terceirizados e a nova direção solicitou a mudança de equipe em janeiro, se baseando nas ocorrências dos anos anteriores e no número de processos judiciais em andamento por suposto erro médico e óbito fetal. 

A Secretaria de Saúde, ciente de todos os fatos, renovou o contrato por mais 6 meses com a mesma empresa. Ao invés de lançar um edital emergencial ou licitação. Ou seja, vai mudar como?” 

O que diz Andressa : “Em 22 de janeiro houve uma reunião onde apresentamos a situação. Todo dia tínhamos que interferir. Notificamos a empresa e em 24/01 o processo estava encerrado. Ou cancelávamos e não renovávamos, fazíamos contrato emergencial e assim tirávamos a empresa até fazer um novo processo licitatório. 

A Secretaria de Saúde e a administração do hospital estão atentas e apurando, caso a caso, eventuais denúncias que envolvem a obstetrícia. 

Esse trabalho é feito junto com o Ministério Público. 

Vieram três empresas no processo emergencial – vale destacar que os três menores preços foram abaixo do contrato atual. 

A empresa vencedora queria manter os mesmos profissionais, isso é normal, mas não cabia com a atual situação. Informamos à empresa que teriam que contratar outros profissionais. Porém, às 14h do dia 24/01, a empresa declinou por não conseguir contratar outros médicos. 

A segunda empresa já tem contratos emergenciais com a prefeitura e aí a Secretaria de Compras achou melhor não fazer dessa forma, por questões jurídicas. Renovamos com a empresa por mais seis meses e nesse período está acontecendo nova licitação. 

Estamos em cima da empresa diariamente. O nosso centro obstétrico é um dos, se eu não me engano, o segundo ou terceiro do país, que tem enfermeiras obstétricas. Então, estas enfermeiras ficam muito atentas ao processo. Temos o apoio delas. A nossa coordenadora, que é doutora e obstetriz, também está assim como nós, atenta a tudo o que acontece. E nós também, a todo momento estamos interagindo com a equipe, vendo porque está demorando, o que está acontecendo. 

Eu faço cinco visitas ao centro obstétrico para analisar e ver se o atendimento está demorado demais, se estão atendendo, como é que está, se tem gestante que está demorando muito. Implantamos aqui no hospital uma reunião diária, que acontece de segunda a sexta-feira. Toda a equipe multidisciplinar se reúne no nosso auditório. Essa equipe é composta pelos coordenadores médicos, que são coordenadores das empresas. Toda equipe de fisioterapeuta, fono, nutri, os coordenadores, enfermeiros, etc., todo mundo que trabalha aqui no hospital, aonde a gente faz a leitura do dia, a ocupação, quais são os problemas, quais são as situações delicadas. Estamos sempre atentos para analisar as situações e buscamos evitar que alguma coisa aconteça”.

Médico embriagado

Segunda denúncia: “O dono da empresa responsável [pela obstetrícia], é o coordenador de equipe, o mesmo vai trabalhar com sinais clássicos de embriaguez (hálito etílico). A maioria dos profissionais são rudes, hostis e tratam as gestantes de forma grosseira. 

No plantão noturno, há várias ocorrências, nenhum deles levanta, as enfermeiras “tocam” o plantão noturno sozinhas. Continuam ocorrendo negligência, imperícia e imprudência. Vejo que há conflito de interesse nessa história. Alguém da Secretaria Municipal de Saúde deveria tomar partido, mas não, renovaram o contrato”.

O que diz Andressa: “Eu não posso dizer que já pegamos o médico embriagado, eu não posso dizer isso porque isso não aconteceu. Mas houve relatos. E as pessoas falam sobre os médicos, sim, que são grosseiros, que atendem mal a gestante. Até quando eu vou conversar com eles, são rudes, são grosseiros. É por isso que queremos trocar a empresa. Por isso que nós trabalhamos, corremos para poder tirar a empresa”.

Situação do pronto-socorro

Terceira denúncia: “O pronto socorro adulto está “engessado”. Há 10 leitos de clínica médica lá dentro (que não deveriam estar), impedindo o giro de leitos dos pacientes, que por sua vez, são acomodados em poltronas e cadeiras, esperando dias por um leito. Já foi tentado transferência destes 10 leitos para área interna do hospital, mas a empresa que deveria fornecer os leitos hospitalares declinou da licitação. 

A Resolução CFM nº 2.077/14 determina que o tempo máximo de permanência de pacientes em Serviços Hospitalares de Urgência e Emergência é de 24 horas. Após esse período, o paciente deve ser internado, transferido ou receber alta. 

Isso não acontece. Ademais, havia xenofobia na escolha dos pacientes que deveriam entrar para o setor interno. SOMENTE pacientes de Balneário Camboriú eram admitidos nos leitos de clínica médica e/ou cirúrgica. Os demais pacientes, para os quais o Ruth era referência, aguardam dias a fio nos leitos de Pronto Socorro, mal acomodados, desassistidos. Digo desassistidos, pois há serviço médico terceirizado de clínica médica (médico com residência e especialidade) para evolução clínica dos pacientes na clínica médica. 

Os pacientes que ficam no pronto socorro, ficam a cargo dos médicos clínico geral, que por mais que alguns tenham ampla experiência, não são especialistas”. 

Diretora no Pronto Socorro Foto: Renata Rutes

O que diz Andressa: “O Pronto-Socorro, realmente, quando assumimos pegamos completamente engessado. Engessado mesmo. Eu não sei o porquê isso aconteceu. Há relatos de que houve isso porque a gestão não aceitava que pacientes que não fossem de Balneário Camboriú entrassem. Isso não pode acontecer de jeito nenhum. De jeito nenhum. Fere totalmente as leis. Eu imagino, porque é o que falam, que como não entrava, para não negar o atendimento, deixavam no pronto-socorro. Então, só absorvia quem era de Balneário. Não está mais acontecendo isso. Aqui não tem CEP, é CPF. Nós estamos trabalhando para toda e qualquer pessoa que chegar lá. 

Hoje eu tenho esse engessamento no pronto-socorro devido a um número de pacientes. Essa semana nós chegamos a alcançar 40 pacientes internados no pronto-socorro. Sabe o que é isso? É absurdo, absurdo. Porque como eles fizeram isso, eles aumentaram o número de leitos. 

Hoje nós temos 118 leitos. Eu passei até, eu chego a ter flutuar, em 150 leitos. Então, com essa questão que eles fizeram, para não absorver quem não era de Balneário Camboriú, eles criaram uma clínica médica dentro do pronto-socorro. 

Quando tu faz isso para conseguir resolver e tirar esse número, é muito difícil. 

Na primeira semana, quando a prefeita veio para fazer a visita, a gente já identificou, eu tinha quarto de descanso um para a ortopedia, um para a pediatria, outro para a clínica cirúrgica e outro para os enfermeiros, tudo dentro da pediatria. Vamos tirar isso de lá, transferir para a área antiga do Pronto Socorro, que estava cheia de caixas. Nós tiramos essas caixas, encontradas na transição, colocamos no auditório, limpamos o espaço e liberamos dez leitos dentro da pediatria. A clínica médica vai ser ampliada, então eu consigo trazer dez pacientes que estão lá internados para parte adequada de internação, com isso eu vou aumentar de 118 para 128 leitos.

Janelas não poderiam estar assim (com papel ou lençol, mas não podem deixar o sol entrar direto nos pacientes e funcionários) Foto Renata Rutes

Assim conseguimos ajeitar um espaço, colocar os pacientes que ficam do outro lado em poltronas. Quando nós assumimos era cadeira normal. Teve paciente que ficou três em cadeira. Hoje o paciente não fica mais na cadeira, fica na poltrona. E conforme vou absorvendo, vamos eliminando essa internação e adequando, deixando o paciente do pronto-socorro por apenas 24 horas de observação. Porque após 24 horas, se tem que ficar mais, aí é a internação, alta ou transferência.

Pronto-socorro como era antes, com cadeiras

Como está agora, com poltronas (Foto Renata Rutes)

Também estamos fazer o repatriamento, que são aqueles leitos que são pactuados com a rede, que é Camboriú e Luiz Alves. Camboriú infelizmente está superlotado também, porque estamos em uma época de superlotação, mas eles nos ajudam muito com o repatriamento, porque é aquele paciente, por exemplo, que já terminou o tratamento, mas ele está fechando dia de antibiótico. Então não precisa ficar num hospital de média complexidade, ele pode ir no de baixa complexidade. Mas não estamos conseguindo fazer, devido à superlotação de todos os hospitais. 

Na reunião diária batemos também o tempo de internação. Quantos pacientes estão com 15 dias ou mais? Quantos 30 dias ou mais? Por que ele está ainda internado? É necessário? Qual é a dificuldade de dar alta? Não é um antibiótico, é um exame? Então vamos acelerar esses exames, vamos acelerar a avaliação para tentar ter mais altas, uma média de permanência menor. Hoje a nossa média de permanência, por mais difícil que esteja, estamos conseguindo manter de 7 a 8 dias, que é um tempo adequado. Mas tem pacientes que acabam ficando mais tempo e outros menos. 

Por exemplo, paciente quando tem que ser transferido para o Marieta (Hospital Marieta Konder Bornhausen, de Itajaí), eu não posso dar alta para ele, e ele fica uma, duas semanas, três semanas esperando para ir para o Marieta para fazer uma cirurgia de alta complexidade, porque eles estão superlotados. Nós também temos dois pacientes que estão aguardando há duas semanas uma transferência para Florianópolis, e aí tem que esperar aqui. Essas coisas dificultam também, mas isso são processos internos que conseguimos avaliar”.

Manipulação de indicadores

Quarta denúncia: As coordenadoras da clínica médica, são orientadas pelas empresa terceirizada, a escolher o paciente menos grave. Para não prejudicar os indicadores hospitalares do setor. Isso é total absurdo! O mesmo acontece na UTI adulto. Temos 10 leitos de UTI, esses leitos são habilitados no estado, na central de regulação de leitos, CRIHFOZ. TODOS os pacientes graves, da sala vermelha (emergência) ou da sala amarela (estabilização) do Pronto socorro com indicação de UTI, deveriam ser admitidos. Mas não é isso que ocorre. 

O plantonista da UTI vai diariamente até o PS e escolhe o paciente menos grave, com menor chance de óbito, para ser admitido, para que não haja mudança dos indicadores da empresa e da UTI. Ou seja, tais indicadores de mortalidade, são totalmente manipulados para  o estado. 

A UTI, por lei, deveria receber todos os pacientes graves do hospital, quando não há leito, regular para leito externo, através do SISREG. Mas tem vários pacientes que ficam lá, aguardo vaga 5-6 dias, porque não dão critério para entrada de UTI, mesmo estando entubados e com drogas que requerem vigilância intensiva. Já ouvi várias vezes: “ah, mas esse é idoso, vai morrer” e aí levam um jovem da sala amarela, que nem entubado está, para a UTI. Isso é crime”.

*O denunciante citou o caso de A., idoso de 80 anos e cardiopata, que ficou 7 dias na sala de emergência, com indicação de UTI. Mesmo sendo regulado para leito externo. A UTI estaria com três vagas, mesmo assim não admitiu o paciente.

O que diz Andressa: “Quando assumimos, visualizamos isso, para nós estava muito claro, que havia uma escolha, sim, dos pacientes para intervenção. Todos relatavam isso que acontecia e, aos poucos, fomos organizando, porque estamos  falando de conduta médica. É complicado a gente falar, né? É complicado afirmar algo desse tipo, se houve alguma negligência médica que causou mortes, até porque não estávamos aqui. Eu não consigo dar um número e falar ‘Sim, aconteceu’, mas houve relatos e não foi de uma pessoa e nem duas pessoas. 

Várias equipes relatando isso, tanto médica quanto da multiprofissional, da dificuldade que havia dessa absorção de pacientes. Mas estamos falando aqui é de relatos verbais. Ele [o médico] tem que absorver aquele que tem necessidade. Dentro de uma avaliação técnica, assistencial, ele tem que escolher aquele que requer o cuidado. Por exemplo, se é um paciente de UTI, ele vai ter que escolher ou definir o paciente que vai entrar para a UTI, que é o paciente mais grave, que necessita de cuidados intensivos. E é isso que estamos batendo na tecla”. 

Falta de médicos

Quinta denúncia: “Na escala da maternidade, são dois médicos 24h e um terceiro que passa visita na maternidade para altas e novas admissões, ao terminar ele ajuda na condução do plantão. Nos dias 06/02 e 07/02/25, não tinha o terceiro médico na escala, sobrecarregando o serviço. E segundo colegas, isso é frequente. Quando o coordenador resolve não ir trabalhar, não procura substituição”.

O que diz Andressa : “Nós descobrimos que os médicos não vieram e a empresa foi notificada. Ocorreu isso, sim. A empresa é obrigada a manter 24 horas médicas aqui, fora o apoio, que é o que faz a visita na maternidade, que é o terceiro médico, e que também é responsável pelas cirurgias eletivas. Em algum período vou ter três e na maioria do período vou ter, 24 horas, dois médicos, e detectamos nesses dias que foi posterior à renovação (do contrato emergencial). Simplesmente não teve ninguém, a gente avisou, e aí eles resolveram, mas fomos em cima para eles trocarem e colocarem o segundo médico. 

Sobre a clínica médica e a UTI, como eu falei, são relatos de funcionários, relatos de colegas de trabalho, de dificuldade com escalas. 

Como diretora geral chamei a empresa. Desde o primeiro dia, nós chamamos empresa por empresa para falar das escalas, que está faltando médicos, que não aceitamos isso, que queremos três médicos trabalhando. 

São 688 funcionários. De empresa médica são 21 contratos. Desses 21 contratos técnicos, eles ficam sob responsabilidade da direção geral e da direção técnica. Esses foram os primeiros que pegamos. Os outros, que é de alimentação, de fornecimento, também verificamos, mas nós temos a diretora administrativa financeira e a diretora operacional que cuidam da regência desses termos de referência. 

No primeiro momento, vimos o termo de cada um. Aqueles acordos de fio de bigode, que tinha muito, não era um ou dois, a maioria dos contratos estavam aqui com acordinhos escondidos, a maioria. A gente foi descobrindo ou que a empresa falava ou o que a gente descobria que falavam para a gente. Então definimos e cortamos todos esses privilégios, que a empresa tem que trabalhar conforme o contrato. 

Aqueles contratos que foram vencendo e que eram novos, nós fomos reformulando. Um deles era o primeiro problema que pegamos, que era o da radiologia. A radiologia nós assumimos com ele praticamente vencendo. Assumimos numa quarta, se não me engano, do Réveillon, na sexta-feira, vencia o da radiologia. Eles deram folga para todo mundo. Não tinha ninguém aqui no administrativo, eu não conseguia saber o que estava acontecendo. 

Corremos e conseguimos que alguém viesse na quinta-feira para dar alguma luz, uma informação. Consegui ter acesso, fizemos o processo emergencial e colocamos a empresa nova, que assumiu. Reformulamos o contrato porque o anterior primava para exame do laudo, exame de urgência e emergência. O paciente ficava aqui até quatro horas esperando um laudo. E eu não podia pedir. O que a gente reformulou? Colocamos um novo, urgência, emergência em uma hora o laudo, urgência em até duas horas e o internado quatro horas. Porque o internado no termo anterior ficava até quatro dias esperando, então a gente mudou. 

Erro de laudo

Sexta denúncia: Empresa da radiologia, imprimindo laudos errados. Erros grosseiros e graves.

(O jornal teve acesso a diversos laudos, como o de uma fratura de mandíbula com indicação cirúrgica e o laudo não descreveu a fratura, o paciente foi liberado e parou na Unimed; Outro caso de paciente vítima de trauma abdominal, que foi liberado, parou em outro serviço, estava com laceração hepática grau 2. Foi a óbito. Laudo do Ruth estava sem alterações)

Fratura de mandíbula com indicação cirúrgica (que o laudo do Ruth Cardoso não indicou)

Paciente vítima de trauma abdominal, foi liberado. Parou em outro serviço, estava com laceração hepática grau 2. Foi a óbito. Laudo do Ruth – sem alterações

O que diz Andressa: “Eu recebi uma informação do médico do Pronto Socorro, porque nós temos um grupo assistencial com os médicos do Pronto Socorro, onde eles informaram que nós estávamos tendo alguns laudos com erros, um deles foi esse da mandíbula. Paciente com a mandíbula fraturada. E aí, imediatamente, entrei em contato com a empresa, solicitei a revisão de todos os laudos naquele dia, inclusive dos pacientes que já tinham sido liberados, e aí a empresa trouxe um relatório. Mesmo com esse relatório justificando por A mais B, que a literatura ou isso ou aquilo, a empresa foi notificada. Porque houve erro. E esse erro, esse paciente foi liberado sem o diagnóstico de fratura. Foi na Unimed, fez o exame na Unimed e voltou para cá para reclamar. Aí ele não quis fazer o atendimento aqui. Então a empresa foi notificada, estamos esperando a resposta da empresa e, dependendo da resposta da empresa, ainda pode ter outra ação administrativa ainda. Eles têm um período para responder, especificamente sobre os laudos”.

Reclamação de puérpera

Sétima denúncia : O jornal teve acesso a uma denúncia referente a conduta médica. Uma puérpera relatou que o médico foi grosseiro, fez uma ‘costura mal feita’, que estava infeccionado, a pele estava dobrada, com odor muito forte. Ela pediu ajuda e retornou ao HMRC. Outro caso de negligência foi de uma mulher que sofreu um aborto e precisou ir para outra unidade de saúde para fazer curetagem, pois no Ruth Cardoso se negaram a fazer.

O que diz Andressa: “Sim, ela [primeira mulher] fez a cesárea aqui e retornou com deiscência, que é a abertura da cesárea. Foi atendida no centro obstétrico e ficou internada. Ela fez a ouvidoria e o esposo, fui até o leito dela, com o coordenador do setor e a nossa coordenadora responsável pelo atendimento. Ouvimos a família, ouvi o relato da puérpera, da avó que estava acompanhando, e também do esposo. Eles relataram que no dia que eles chegaram aqui para o atendimento da deiscência, eles foram muito mal atendidos, com o médico muito grosseiro, mal educado, grosseiro nas respostas, que não explicou, que culpou ela do que estava acontecendo. Imagina, uma puérpera, que recém ganhou o bebê, totalmente abalada emocionalmente porque os hormônios estão em um turbilhão. Ela também trouxe relato do dia da cesária, disse que foi mal feita, que os pontos foram mal colocados. Eu expliquei referente à deiscência, que pode acontecer, pois o corpo pode recusar o fechamento de qualquer cirurgia, pois é um corte de sete camadas. Mas, diante do quadro, tudo fica maior, com os maus tratos, grosseria e falta de explicação. Ela ficou internada conosco por alguns dias e teve acompanhamento da psicóloga, que ia todos os dias para avaliar e conversar com a família, tanto com ela quanto com o  esposo; a nossa coordenadora de atendimento também ia no leito pra conversar, pra acolher. Mas houve essa falha e a empresa também foi notificada por isso. 

Aconteceu, não foi só esse caso, foram muitos, infelizmente. E a minha fala foi para que não venha a ocorrer nenhum óbito, nem de criança, nem de gestante. Eu estou extremamente preocupada. “Ah, Andressa, você está acusando os médicos de cometer negligência?”. Não, eu não posso acusar, porque isso não sou eu que julgo. Isso é o CRM que julga e isso é um ato médico para ser verificado. Porém, eu posso dizer que nós temos, sim, suspeita de atendimento mal conduzido. E isso nos traz uma insegurança. E é essa insegurança que não queremos. Porque um pedido da prefeita foi: “trabalhem para desmistificar a imagem do Ruth Cardoso”. Isso tem que acabar e é o que fazemos diariamente aqui, incansavelmente, todos que estão aqui. Mas para algumas ações nós precisamos mudar peças. Assim como mudamos muitas peças de funcionários que foram demitidos, porque é um processo seletivo e nós podemos fazer isso, porque eram pessoas que não estavam se adequando com o perfil do profissional que o hospital requer neste momento. 

Porque queremos um trabalho sério. Queremos que as pessoas que estão aqui sejam dedicadas, tecnicamente preparadas e sejam responsáveis ​​quanto ao ato de cuidar de uma vida. Não vamos compartilhar com pessoas que não querem fazer isso. 

Com as empresas, podemos fazer o que estamos fazendo desde o primeiro dia, solicitar mudanças de médicos, porque está no contrato. Se ele não está entregando um bom atendimento, chamamos a empresa, explanamos o que está acontecendo e solicitamos a troca do profissional. A empresa tem que trocar, inclusive rege no contrato que ela tem até 24 horas. Já trocamos vários profissionais”.

Falta de experiência e médicos que vão dormir e não acordam para atender pacientes

Oitava denúncia: “O pronto socorro está entregue a uma coordenação médica que nada resolve. Que está contra “o sistema”. Há uma regra interna, para admissão de médico para trabalhar no pronto socorro, pela complexidade dos casos da porta: mínimo 6 meses de formação e cursos de urgência e emergência como ATLS/ ACLS, que não está sendo cumprida, deixando médico recém formado na porta. Isso demanda mais tempo, mais pessoas aguardando mal acomodadas e um risco maior para os pacientes

Pronto socorro, à noite, os médicos vão dormir e deixam os pacientes esperando horas e horas. 

O plantão noturno de 17/02, foi bem tumultuado, havia mais de 10 pacientes para reavaliar, e a partir das 3h só ficou a [nome da profissional], começou a chegar mais pacientes, ela não conseguiu vencer a porta, e o [nome do médico] não quis nem saber, as enfermeiras chamaram duas vezes, batemos na porta do quarto, mas não levantou”.

O que diz Andressa: “Eu anoto tudo. Foi mesmo no plantão do noturno 17/2. Nós fizemos uma reunião com o Pronto Socorro adulto, onde soubemos de todas as dificuldades. Falamos sobre a demora das reavaliações. Nesta reunião, participou o dono da empresa, o representante legal, o coordenador [o médico que não acordou] e o outro coordenador, que é o apoio. Nós destacamos a demora na reavaliação. O que é a reavaliação? Paciente entrou, passou na consulta, e foi solicitado exame, hemograma, raio-x, o que for. Ele vai fazer esses exames. Ele precisa ser reavaliado, ou ele vai ficar para fazer mais medicação, ou ele vai ter que ficar internado, ou ele vai ser liberado. E aí, há uma demora, esse paciente fica esquecido. Estamos batendo na tecla desde que assumimos: Vocês não podem esquecer do paciente. Tanto que para isso, nós colocamos um enfermeiro de 8 horas dentro do pronto-socorro, que ele, além de fazer a circulação e o cuidado, porque os outros enfermeiros ficam assistenciais, e ele fica fazendo a parte também assistencial, mas também administrativa – cuidando se o paciente já foi fazer o raio-x, se o laboratório já fez o exame, se já está pronto o exame, avisando o doutor. 

Colocamos escaninhos na porta do médico, então fizemos essa reunião dizendo que isso não poderia continuar.

Se tivesse que trocar médico ou não, treinamento, o que fosse. Porque exigir experiência, como foi falado a questão de dois anos de experiência ou ACLS, nós não podemos exigir. Primeiro, o contrato não rege isso, esse contrato que foi feito é anterior. Então ele não rege. Se eles quiserem colocar um recém-formado, a empresa legalmente está trabalhando de acordo com o termo. Aí conversamos, mostrando, não dá esse médico, tem que contratar outro. Mas eu não posso notificar e exigir que ele tem que fazer porque não está no contrato. Estamos fazendo um novo, porque esse contrato do pronto-socorro, vence dia 01/04. Neste novo colocamos exigência de experiência. 

Sobre essa questão do médico dormindo de noite foi falado também. Falamos sobre o horário do descanso, horário definido, porque legalmente eles têm que descansar, mas nós estamos falando no volume grande de médicos para atender a nossa porta e eu só vou para o descanso se eu tenho a porta parada. Se eu não tenho a porta parada, estou falando de pessoas, de vidas, que estão esperando atendimento. Então essa questão do descanso, como tinha comprovação, nós também notificamos a empresa.

Anestesia sem normas de segurança

Nona denúncia: “Como todo serviço médico no Ruth, a anestesiologia também é terceirizada. Ninguém da especialidade e alguns do centro cirúrgico, cumpriam normas de segurança. Havia uma copa dentro do centro cirúrgico. O que é ilegal, além de manter a proliferação de insetos e roedores”.

A copa que havia dentro do centro cirúrgico. O que é ilegal, além de manter a proliferação de insetos e roedores. (Adendo: a copa já não existe mais)

(O jornal teve acesso a muitas denúncias envolvendo casos de anestesistas, como o de uma gestante internada para cesariana às 10h05 e o anestesista não estava no hospital e chegou somente 11h11, rindo e dizendo que estava ‘tomando café’ em tom de deboche. Além do atraso, não fez a higienização das mãos. Também há casos de racismo com gestantes haitianas, além de denúncias de anestesistas assistindo série enquanto acontece a cirurgia e até mesmo um paciente que pediu para não ver a cirurgia do fêmur porque tinha pânico e não foi acolhido, tendo então um caso de choque emocional após a cirurgia).

O que diz Andressa : Desde 28/02, à 00h01, a empresa de anestésio não está mais, porque venceu o processo que estava, que é o emergencial que foi feito, e aí entra uma nova empresa. Com novos médicos e alguns iguais, porque nesse caso podem ser os mesmos, se quiserem contratar. Mas destacamos aqueles que notificamos já para a empresa trocar, porque isso é feito quando a empresa ganha – eles mandam os documentos de verificação do profissional e aí já informamos que não pode ser contratado. 

Problemas na sala de vídeo, estagiário operando e mais

Décima denúncia: “Há problemas no centro cirúrgico: a torre de vídeo que é essencial para exames como endoscopia, colonoscopia e cirurgias por vídeo, a mais comum de vesícula, vive com avarias. Há casos também de estagiário de medicina operando com um colega cirurgião, fechando barriga sozinhos. Ortopedia opera sozinho, pela norma do CRM, não se deve operar sozinho e muito menos com um profissional não médico. Resolução CFM nº 1.490/98: “ao estabelecer a obrigatoriedade de médico como auxiliar, capacitado e habilitado, para substituir em caso de impedimento o cirurgião assistente na cirurgia em andamento, objetiva unicamente a segurança e a boa assistência ao paciente, sendo esta determinação tão importante que que se sobrepõe a qualquer dificuldade porventura existente para a sua efetivação. Ou seja, uma terra sem leis. Cada um fazendo do jeito que acha que deve ser. Colocando os pacientes em risco”.

O que diz Andressa: “Eu quase infartei nesse dia [do estagiário operando]. Descobrimos por uma postagem do acadêmico. Ele postou ‘ele em campo com a cirurgia geral’. Chamei a coordenadora geral, questionei e fiquei sabendo que havia um termo assinado entre a divisão de saúde do passado e a coordenação da geral, da cirurgia geral e alguém também responsável da Univali aonde permitia esse estágio de verão extracurricular. 

Falei com o coordenador de Medicina para entender se havia isso. É proibido de fazer, de forma alguma. Sabíamos que não pode, porque para fazer uma estágio você precisa ter um perceptor legalmente ligado a Univali ou qualquer outra instituição, no caso aqui é Univali. Proibimos imediatamente, para que não acontecesse mais. “Ah, mas nem acompanhar?”. Nem acompanhar, não existe estágio aqui dentro, porque nós confirmamos com a Univali. Cancelamos. O estágio que tem, que é o termo legal, assinado tanto pelo ente privado ou público que quer fazer o estágio aqui, tem que estar assinado entre as partes e aí eles mandam o aluno, ele tem que ter seguro, ele tem que ter as vacinas, ele tem que estar cursando o curso e além disso tem que ter um preceptor aqui, isso para qualquer área, tem que ter um preceptor que é responsável por aquele acadêmico e as áreas são tratadas também. 

Qual é a área que vocês vão permitir que a gente tenha estágio aqui? São estas. E o estágio não é dentro de setor fechado, a gente não abre setor fechado, UTI, neonatal, centro cirúrgico, nem para olhar. Mas era um acordo que existia anterior, então nós acabamos com ele na hora que soubemos. Foi só susto… um susto atrás do outro. 

O que eu acho importante falar é que a engenharia clínica não tem no hospital. Nós estamos fazendo o processo que vai rodar para uma empresa assumir a engenharia clínica. 

A engenharia clínica é quem cuida do parque tecnológico. 

Equipamento caro, sem manutenção, que corre o risco de estragar (no detalhe, veja como está “amarrado”) Foto: Renata Rutes

O que é o parque tecnológico? São todos os equipamentos utilizados no paciente. Monitores, bombas de infusão, aparelhos cirúrgicos, foco, cama, caltério. Enfim, tudo que é utilizado para assistir o paciente. Eu preciso, porque não é só para fazer uma correção quando estraga. Eu preciso fazer o preventivo, porque muitos equipamentos precisam passar por calibração. 

O que é a calibração? Se aquele equipamento está dando, vamos supor, a saturação do paciente. Como ele está respirando? Se ele está calibrado, ele está dando o número certo. Se não, eu não tenho essa certeza. 

Os equipamentos aqui no hospital não tinham essa assistência. Eles ainda não tinham a engenharia clínica. Não sabemos como esses equipamentos estão. Os equipamentos que estão funcionando, a qualquer momento, podem estragar. 

A empresa ajuda não só na corretiva, quando estraga, mas ela faz a preventiva. Por exemplo, eu faço a calibração do tomógrafo, eu faço os testes, eu dou atestado que ele está fazendo os laudos corretos, que não tem nenhuma varia. 

Quando tem alguma questão de correção, se é um equipamento que precisa, que tem uma exclusividade com alguma empresa, nós acionamos, mas a engenharia clínica acompanha, o engenheiro acompanha a execução desse processo. E se for equipamento que não é exclusivo, eles vão fazer o conserto. Eles vão avaliar, vão ver o que é que precisa ser feito, vem a peça, substitui. Essa empresa vai ser licitada 

Então, os equipamentos hoje, se tu me perguntar, ‘Andressa, como é que estão?’ Eu não sei.  Eu só sei que vai estragando. Primeira semana, os nossos carrinhos de anestesia dois não estavam funcionando. Um com vazamento de gás, o outro com problema no capnógrafo. A torre de vídeo que é falada na denúncia, tem um vazamento de gás,  chamamos a empresa. Ele está parado por causa disso. 

Monitores também, mandamos para arrumar, mas tudo fazendo uma contratação direta, porque não tem a engenharia, o momento que tiver, a engenharia vai conseguir avaliar esse parque tecnológico e nos dizer sobre as condições, porque hoje não sabemos como que está. 

Para ter noção, na minha primeira visita aqui, na transição, no dia 26 de dezembro, quem me acompanhou, falou pra mim quando me mostrou o tomógrafo, ‘ah, eu vou te mostrar esse cantinho aqui, porque quando der problema, você abre esse negocinho aqui e mexe’. Eu disse ‘eu não!’. Como eu mexo no tomógrafo, um aparelho que faz exames, que faz um diagnóstico… esse é o único exemplo que eu preciso dar, e é possível saber como é que estava o parque tecnológico aqui do hospital.

Referente a ortopedia, dos procedimentos sozinhos, sim, era uma prática que acontecia. Eles operavam, independente do procedimento, porque existe uma lei do CRF, não é nem do CRM estadual, que as cirurgias, elas precisam ser realizadas pelo médico, sempre como auxiliar o médico. 

O médico, que é o cirurgião principal, sempre tem que estar junto com o auxiliar o médico. Isso é o que rege eles. Não fomos nós que criamos. Quando assumimos, percebemos. Um dia que eu entrei no centro cirúrgico e peguei, de fato, acontecendo, que a gente já tinha falado, e encaminhamos essa normativa, informamos e aí verificamos que eles estavam realmente operando sozinhos. Isso [saber que não pode operar sozinho] é uma coisa óbvia. Eles falaram ‘mas então, vai travar, por que como é que a gente vai operar?’. Simples, eles têm um terceiro médico de segunda a sexta-feira, que faz a rotina dos pacientes do centro cirúrgico e os atendimentos a nível de pronto-socorro, e dois médicos que ficam responsáveis pela cirurgia. Estes médicos são responsáveis pela cirurgia eletiva e pela cirurgia de urgência e emergência. Eles têm que se organizar. Você tem que atender o pronto-socorro e também tem que atender as cirurgias de urgência e emergência. 

Foi determinado que eles parassem de fazer [cirurgia sozinhos] e começassem a executar, de fato, o que o conselho deles rege. Não é nada criado por nós. 

Nós pegamos ausência de material, como parafusos canulados, órtese e próteses… nós assumimos aqui praticamente sem equipos simples. Nós tivemos que sair pedindo emprestado para Penha, Floripa e Camboriú. Temos uma média de oito mil equipos que nós estamos devendo. Bactrim, antibiótico, zerado, abocath 20, zerado. São coisas básicas, pegamos o estoque simplesmente zerado, tivemos que sair correndo pedir emprestado; biológico tendo que pegar emprestado, porque não tinha, o biológico é aquele que faz os testes na autoclave, para dizer se a autoclave é capaz de fazer a esterilização do material. 

Tivemos falta de sabonete, o que a gente utiliza para a esterilização das mãos, de ter que sair pedindo o quantitativo que tinha na rede para conseguir sustentar os nossos dias. E mesmo assim usamos o sabonete que não é o adequado pela CCH, porque o hospital usa um tipo específico. Faltou entre tantos outros itens de nutrição, de faltar arroz e assim foi.

O que a gente percebe com isso? Não tinha planejamento nenhum ou foi proposital deixado desse jeito. Ou porque não tinha planejamento algum e nós pegamos dessa forma e fomos ‘socorro aqui, socorro ali’ para tentar fazer com que o processo não parasse. 

Referente aos parafusos canulados, que eu abro aqui um parêntese e um parêntese bem complexo, estamos falando de órtese e próteses. Órtese e próteses são materiais muito caros. As órteses e próteses aqui no hospital ficam jogadas dentro do centro cirúrgico. Falamos de parafusos que custam R$ 10 mil e não tem cuidado nenhum. 

Se você for fazer uma investigação no Google, encontra várias questões envolvendo sindicâncias jurídicas e criminais, onde várias foram instauradas. 

Vimos um negócio aqui solto e bem complicado. No primeiro momento, tiramos esse OPME, colocamos no local fechado, que é a nossa farmácia satélite que atende os setores, até a nossa farmácia satélite do centro cirúrgico ficar pronta.

É tudo ‘cadê esse caderninho? Cadê aquele caderninho que eu anotava? Cadê aquela folha que eu guardei? Cadê isso?’. Nós tivemos algumas questões também que recebemos da empresa dizendo que fez, que colocou o material no paciente e que não recebeu a nota.  ‘Cadê a nota?’, ‘Eu não sei, eu não recebi’ e daqui a pouco a nota apareceu, que foi refeita. Então, aí você fica com várias dúvidas. Nós não podemos acusar, mas nós temos dúvidas. Estamos analisando esse processo”. 

Materiais contaminados

Décima primeira denúncia: “Materiais contaminados e cirurgia de prótese de fêmur suspensas. Imagem de uma compressa de um material depois que foi lavado. A enfermeira do CME (Central de Material e Esterilização) está bastante aflita porque está só com funcionárias idosas, que não dão conta do material, que não ficam prontos”.

O que diz Andressa: “Essa foto, sim, eu vi. Foi da caixa de vídeo, foi feita uma má higienização e aí há vários pontos. Primeiro ponto, equipamentos. O que temos hoje na nossa CME, que é completamente inadequada, autoclave e equipamentos básicos. 

Nós não temos equipamentos que hoje são utilizados e preconizados pela vigilância sanitária para fazer higienização desses materiais. Então, faz do jeito que dá. 

Resquícios podem, quando são cânulas que a gente fala, porque não tenho a pressurizadora que faz com que o sangue que está ali dentro passe rapidamente. Por isso tivemos esse tipo de problema na hora de fazer a secagem. E com isso, essa cirurgia, nesse caso, foi cancelada. 

Nós já fizemos o levantamento, nós paramos as cirurgias eletivas e fizemos o levantamento de todo o nosso material dentro do centro cirúrgico, para saber o que presta – e eu estou falando de tudo que vai para uma cirurgia, de material arsenal da cirurgia. O que presta, o que precisa ser comprado e foi assustador, quase nada, é tudo muito ruim, tesoura que não corta direito, que já não tem mais efetividade… para podermos fazer a solicitação. 

Sabemos agora o que solicitar. Também do material de vídeo, nesse caso o material que estava contaminado. Essa caixa de vídeo é utilizada para cirurgia por vídeo, qualquer coisa que você vai fazer por vídeo, você só tem uma caixa. 

Se no dia eu tenho três cirurgias de vídeo, eu tenho que fazer uma agora, eu tenho que dar um tempo, porque tem que voltar para a CME, tem que lavar, tem que processar para depois fazer a outra. Não posso correr com isso, porque o processo não é bem feito. O que encontramos na CME? De recursos humanos. Pessoas que foram jogadas lá por punição ou, ‘ah, é muito idosa, não dá mais, vou colocar lá’, mas foram jogadas e sem treinamento, alguns sabendo, outros não. Então, ‘no dia tal, eu confio porque tem fulano trabalhando’, outro dia não, porque fulana não aprendeu ainda. Fora a questão do turnover, que é muito alta no hospital. Nós reformulamos do jeito que podemos e estamos capacitando essas equipes”.

Andressa diz que não tinha noção que a situação estava ‘tão ruim’

“Eu sabia que era ruim, mas não tinha ideia de que era tanto. No primeiro dia, quando comecei a circular no hospital, teve uma hora que me escorei no Pronto Socorro, e falei, ‘meu Deus do céu, por onde vou começar?’. 

Eu não sabia, porque tudo era sério, tudo era urgente e eu não sabia por onde começar, porque não achava nem um fio da meada, sabe? 

A sensação que eu tinha, quando eu entrei aqui no Ruth, é que esse hospital fazia parte de uma cidade deserta. 

A cidade foi abandonada, mas tinham pacientes aqui e aí aqueles que ficaram resolveram ‘ah, vamos cuidar’. Então, a fulana fazia do seu jeito, a ciclana do jeito dela, cada um à sua maneira e aqueles mais responsáveis tentavam colocar a ordem na casa. 

No meio disso tudo, os protocolos se perderam, os fluxos se perderam, não tinha início, meio e fim e a desmotivação de todos os funcionários, mas todos, eu não coloco e tiro nenhum. Cada um estava fazendo o que achava que podia fazer, do jeito que queria fazer. Não tinha coordenação, não tinha gestão em saúde, não era aplicado nada aqui”. 

Importância da presença e de mudanças: “Uma bagunça”

“Tanto que nós fizemos na segunda semana, logo depois do final de semana do Ano Novo, reunião com os enfermeiros de cada setor. 

Os enfermeiros falaram ‘a gente não lembra a última vez que fizemos uma reunião com a gestão’. Eu vindo aqui de noite, de madrugada, final de semana, e perguntaram ‘a senhora vai vir sempre aqui’? Mas é óbvio que eu virei, se acostumem comigo e conversem. ‘Mas a gente pode falar com a senhora?’, ‘pelo menos agora eu conheço quem é a gestora do hospital’. Isso era geral, eles não tinham mais acesso aos diretores, aos coordenadores.

Eles não sabiam nem o que os coordenadores faziam aqui dentro. Se perdeu esse papel, essa figura, ‘eu sou o coordenador do atendimento, eu sou responsável por isso, eu converso com você, eu vou perguntar, eu vou exigir’… tudo se perdeu e cada um fazia do jeito que queria fazer. 

Agora nós realinhamos. Quando entramos era pesado andar no hospital, hoje é leve. Reativamos todas as capacitações, a Terapia do Riso, a questão de treinamento, de acolhimento, ver e agir, corrigir na hora que acontece a falha, as notificações, a qualidade está muito ativa, muito inserida, porque a qualidade é quem faz o núcleo de segurança do paciente, quem cuida da segurança do paciente, que nos dá os indicadores de como é que é que nós estamos. 

Dentro de um hospital você sempre vai ter uma notificação ou outra, de algo que houve falha, de um plantão que não foi passado corretamente, um nome de um paciente que não foi escrito corretamente, porque isso é a segurança do paciente e você precisa colocar o nome dele corretamente. 

Além dos treinamentos, nós adequamos os horários dos funcionários, porque aqui tinha uns que faziam 12, eu tinha gente que fazia seis horas, seis de manhã e seis da tarde e isso tudo misturado. 

No mesmo setor, no pronto-socorro, vou dar um exemplo, eu tinha funcionário trabalhando de 12, eu tinha funcionário trabalhando de seis horas e funcionário trabalhando de oito. Você não conseguia nem saber o que estava fazendo. Quem estava trabalhando e quem não estava? 

Passamos para 12. Hoje os funcionários são 12 por 36. Então, diminui o número de atestados, porque eles conseguem descansar. 

Tenho uma continuidade no assistencial, porque isso já existe. Isto tudo que comprovam a continuidade do assistencial. Você entra sete horas e você continua 12 horas assistindo esse paciente. Eu não tenho uma quebra na assistência com mudança de atendimento, além do descanso do funcionário.

Nós olhamos para os funcionários que estavam aqui. 

Tinha gente que tinha expertise para estar na UTI, estava na SAME (Serviço de Arquivo Médico e Estatística) por castigo, porque aconteceu isso. Identificamos e devolvemos para a UTI. Quem estava aqui que tinha expertise pronto socorro-pediátrico, colocamos para pediatria. 

Realinhamos conforme a habilidade do profissional, que isso é outra coisa também fora a capacitação, fora treinamentos, fora revisão de protocolos, que são os protocolos padrões, a aplicação de fluxos. 

O que é que é isso? Como é que eu faço isso? Você não pode, vamos supor, a questão dos prontuários que nós ficamos sabendo que teve muita mudança do SAME, tira daqui e coloca ali. 

Os milhares de prontuários do Ruth, que não podem ser descartados. Foto: Renata Rutes

O que eu fiquei sabendo? Um dia, quando a gente estava na mudança das salas para o auditório, ‘isso aqui a gente vai rasgar e jogar fora’. É prontuário! Não é ‘só exame’. Tudo que é do paciente, nós temos uma lei que rege, nós temos que ter uma comissão instaurada que vai analisar esse documento e vai me dizer, ‘não, esse documento eu posso jogar fora’. E o jogar fora é incinerar, eu não rasgo ele. “Ah, mas no ano passado a gente pegou e doou para reciclagem”. Me falaram isso. Eu não consegui nem esboçar nada. Estou falando de prontuários. Eu nem cheguei na assistência, de erros gravíssimos que nós encontramos. 

Então era assim que esse hospital era. 

Pensa uma bagunça dessas, alinhar tudo isso. Consigo dizer que hoje temos uma visão de tudo, porque a transição não foi clara. 

Descobrimos muita coisa conforme foi passando. Por exemplo, os computadores foram todos apagados, então não tinha nada de documentação salvo nos computadores. Começamos exatamente do zero e contando com a informação do Compras daqui, contando com a informação dos funcionários. Tipo CSI. A gente fez uma investigação para descobrir e tocando a roda ao mesmo tempo.

Na primeira semana parecia que nós tínhamos trabalhado um ano, pelo tamanho do cansaço e do desespero. Desespero mesmo. Teve horas que fiquei apavorada, porque era muita coisa para fazer. Mas nós nos unimos, a equipe que está aqui de comissionados é muito técnica, tem bastante conhecimento. E digo que além de conhecimento, são pessoas com personalidade forte. Todos que estão aqui. Eles não aguentam, eles não aceitam como está. 

Apesar de toda a dificuldade da questão burocrática do Compras, a questão de dotação, da questão financeira que foi encontrada a prefeitura, tudo isso que traz dificuldades de execução das coisas maiores. 

Essas questões burocráticas que legalmente são necessárias para manter a transparência e todo o processo legal do serviço público, mas que travam muito, principalmente quando você fala de assistência à saúde. 

Mas mesmo assim, eu vejo que o time aqui está incansável e a turma também dos funcionários, porque eles amam o Ruth Cardoso, apesar de todas as dificuldades.

Trabalho muito com eles para que se sintam pertencentes a esse processo. Não somos nós que estamos fazendo e vocês vão só assistir. Não. Vocês fazem parte disso tudo.  Se eu não me sinto pertencente a um processo, não vai acontecer. Então tragam ideias, as dificuldades, nós estamos abertos para isso. Tanto que eu digo: aqui é a porta da esperança, porque todo mundo entra, todo mundo fala, todo mundo vem, coisa que eles estavam com essa dificuldade, porque eles não tinham acesso a gestão, eles não podiam entrar pela porta”. 

Futuro do Ruth Cardoso 

“Eu vi uma resposta que o Marzinho [diretor do Página 3] fez nas redes sociais, sobre a situação do Ruth Cardoso. Eu assisti, acho, algumas três vezes. E eu disse ‘meu Deus, como é ruim’, porque, assim como a opinião dele, tem muita gente que pensa do mesmo jeito. 

Eu sou uma gestora, tanto pública quanto privada. Tenho especialização para as duas. Além disso, eu tenho um amor e um respeito pelo Sistema Único de Saúde. Eu acredito muito no SUS, demais mesmo. E quando eu digo acredito, é porque eu sei que a ferramenta, como ela foi escrita, é possível de ser colocada em prática, mas para isso você precisa ter gestores que entendam deste processo, gestores que saibam fazer gestão em saúde e que ajam de uma forma transparente, que têm um conduto elevado e que queiram fazer de verdade. De verdade é com respeito, com amor, com entrega, com cuidado, com atenção. 

Eu não estou falando do gestor geral aqui, que estou hoje nesse cargo, mas de toda uma equipe técnica. Volto a falar o que eu já falei sobre o pertencimento. A equipe que trabalha aqui, profissional, precisa se sentir pertencente a este processo. 

As pessoas têm que entender que este hospital, o Ruth Cardoso, ele é uma empresa da população. E eu trabalho para uma empresa que é minha enquanto cidadã. Eu preciso entregar o meu melhor, eu não posso vir para cá e achar que ele é o meu segundo vínculo, terceiro vínculo e aqui eu faço o que eu quiser. As pessoas têm que entender que não. Fora que são vidas em jogo. 

É trabalhoso, é muito trabalhoso. 

É humanamente desgastante, mas não é impossível. 

Se todo mundo der as mãos, se todo mundo lutar para o mesmo lado, remar para o mesmo lado, é possível fazer. 

Vai demorar, claro que vai. Porque a gente pegou um desastre. Um desastre, um descaso, uma irresponsabilidade. E aqui, não pense que eu estou sendo leviana: é criminal o que a gente achou aqui. E cada vez que eu converso com a prefeita Juliana Pavan eu fico mais entusiasmada, porque eu vejo que ela quer fazer tudo isso, que ela quer fazer dar certo, que ela quer colocar de fato as coisas andando e cada vez que ela fala isso me dá mais gás. 

Eu não estou aqui pelo cargo. 

Eu estava como secretária [no governo de Fabrício Oliveira, na época da pandemia], eu pedi exoneração, e eu fui viver minha vida. Eu me afastei de tudo porque eu precisava me afastar, mas eu sentia falta do SUS, porque é algo que me completa e algo que eu acredito porque eu estudo muito, e eu acho que eu tenho que entregar isso para as pessoas. 

No privado você entrega também, mas o SUS é diferente e é necessário fazer isso porque você está contribuindo com a sociedade. Eu acho que cada cidadão precisa disso, então isso aqui para mim é uma missão de fazer acontecer. São muitas vertentes, muitas situações diariamente que acontecem em 24 horas, 7 dias por semana… mas é possível fazer, com conhecimento e responsabilidade, e empregando o dinheiro com muita responsabilidade porque hoje se você me diz ‘o hospital custa R$ 10,5 milhões’… óbvio que não, é menos que isso! Só que são torneiras e torneiras abertas aqui dentro, algumas já conseguimos fechar, outras nós vamos conseguir com a implantação do sistema, que já estava licitado e que não foi colocado no hospital, somente na rede. 

Com o sistema vamos saber quanto custa cada paciente, o que sai da farmácia, medicamento que não é totalmente utilizado e pode ser aproveitado, gasto com oxigênio e o leito em si. Isso também vai ajudar no processo de terceirização do hospital, que está sendo refeito”.

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