Do escrever xexelento

xexelento

Já deve ter ocorrido a você, letrado leitor, deitar no papel palavra que nunca escrevera antes. Comigo aconteceu na semana passada, enquanto preparava minha newsletter, “Tinteiro” (se você não é assinante, cadastre seu e-mail em wdelguiducci.substack.com para recebê-la gratuitamente todas as sextas-feiras com impressões sobre livros, filmes, músicas e séries). Na ocasião, por virtude do filme “Um completo desconhecido”, decidi atribuir ao caráter de Bob Dylan o adjetivo “xexelento”. Que me lembre, nunca havia me expressado por escrito com tal vocábulo. Posso até estar enganado, mas de fato não me recordo. Tanto que a primeira coisa que me ocorreu foi “é xexelento ou chechelento”?

Recorri ao pequeno Aurélio que mantenho sobre minha mesa de trabalho. A palavra não constava ali. Fui ao Aulete. É com “x” e significa: “1 De mau aspecto; desagradável. 2 De má qualidade; inferior”. Não é o significado corrente na minha realidade discursiva. Lá em casa xexelento sempre foi sinônimo de “enjoado”, “entojado”, “antipático”. Um xexelento é, se me permitem descer o nível retórico abaixo da linha da cintura, um péla-saco. Não havia outra palavra que expressasse o que eu senti sobre o Dylan, o genial Dylan interpretado por Timothée Chalamet – que tem uma carinha bonitinha e muito xexelenta, aliás, como seu xexelentíssimo nome, que, percebo agora, compartilha fonemas com o adjetivo em discussão. É o Timothée Xexelet.

Pode ser mais frequente com a gente, que é operário da palavra, essa coisa de escrever o que normalmente só se escuta em conversas de botequim e ponto de ônibus, mas acredito que não seja fenômeno que escape à realidade de qualquer escrevente. Você mesmo, leitor mineiro como eu, talvez já tenha ficado tentado a escrever “bubiça” ou “bobiça” em referência a alguém bobo ou a alguma tolice qualquer. E quando descobriu que a norma culta diz que o correto é “bobice”, quem sabe tenha dado um passo atrás, porque escrever “certo”, aqui, dinamitaria a espontaneidade e a potência de significação da fala coloquial.

Talvez então, se muito ousado, você tenha optado por manter a grafia errada; ou, pragmático, tenha buscado um sinônimo, como “marmota”. Aí, em vez de, “Ih, bubiça, para de pensar assim”, você reescreveria sua mensagem e dispararia “Ih, marmota, para de pensar assim”. E quem sabe percebesse que jamais escrevera “marmota” em sua vida e ficaria com uma certa sensação de desconforto.

É que as coisas no papel (ou na tela, grafadas letra após letra por dedos frenéticos sobre a superfície luminosa) tomam uma outra dimensão, uma aura algo documental. O escrito, por tradição, remete à linguagem oficial, ou seja, à linguagem da escola, do Estado, dos professores, jornalistas, advogados. Mas quando uma expressão é abduzida na atmosfera vulgar da conversa de comadre e concretizada na escrita, causa uma fissura no comum discursivo. Por essa fresta, a língua respira. E nos faz lembrar nossa própria e singular humanidade.

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