Abordando a questão da violência doméstica, a peça “Peixes” está de volta a BH

Após ter permanecido em cartaz no Rio de Janeiro, durante o mês de janeiro, “Peixes”, de (e com) Ana Regis, retorna à capital mineira

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Após uma bem sucedida temporada no Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro, a peça teatral “Peixes”, escrita, dirigida e interpretada por Ana Regis, volta à capital mineira – lembrando que a primeira temporada aconteceu em 2018, na Funarte. Agora, a montagem cumpre temporada a partir do dia 14 e até 17 de março, com sessões de quinta a sábado, às 20h, e no domingo, às 19h, no Teatro Marília. Detalhe: na estreia, dia 14, haverá uma roda de conversa após a sessão.

O espetáculo lança os holofotes sobre Cláudia, uma professora de 54 anos que sofreu violências domésticas e morais ao longo da vida. A narrativa tem como ponto de partida uma consulta psiquiátrica, que acontece em um manicômio judiciário, onde Cláudia se encontra detida. Desse modo, em “Peixes”, o público acompanha as histórias da personagem, bem como de muitas outras mulheres. Como a sinopse indica, “são memórias que transitam entre o humor, o lirismo e a intensidade”.

Homens na plateia

Em entrevista ao Culturadoria, Ana Regis conta que, quando estreou “Peixes”, há cerca de seis anos, tinha em mente se tratar de um texto endereçado ao público feminino. “Aliás, tinha certeza. Mas o tempo foi passando e, assim, fui me dando conta de que o problema do machismo não é da mulher, é do homem. Então, comecei a entender que tinha que fazer (a peça) para os homens. Assim, a minha vontade é a de que tenha cada vez mais homens na plateia. E, na verdade, tenho tido muitos retornos deles – na verdade, alguns vêm até me pedir desculpas… Lá no Rio, três, vieram me pedir desculpas, envergonhados. Do mesmo modo, já vi, na plateia, homens chorando, e muito”.

Mas, evidentemente, por ora o retorno das mulheres é preponderante. Aliás, no curso da entrevista, Ana Regis lembrou – claro, sem citar nomes – dois casos, entre os vários que a marcaram. Em tempo: o nome do espetáculo, “Peixes”, justifica-se por conta de um dos assédios que a personagem sofreu na infância. Mas Ana Regis se preserva o direito de só contar para a reportagem em off. “Porque é o ponto clímax do espetáculo, o ponto de maior tensão. Esse abuso é o desencadeador de um ciclo de violência. Aliás, quando me perguntam (sobre o título), costumo dizer que tem que ir assistir à peça”, despista.

Inclusive, Ana conta que inclusive já houve confusões quanto ao sentido da empreitada, por conta do título. “Durante uma Campanha de Popularização do Teatro e da Dança – da qual, aliás, eu adoro participar, inclusive por ser quando atinjo mais pessoas -, já teve gente que foi pensando se tratar de uma montagem sobre astrologia (o signo de Peixes). Aí é aquele susto, né? Mas, antes do início do espetáculo, eu sempre aviso o público que (a encenação) pode conter gatilhos, pelo fato de a gente abordar o tema da violência doméstica”.

“Porca e gorda”

Ana Regis se lembra de um dia, quando estava em um ensaio aberto de “Peixes”, na Universidade do Sul da Bahia, em Porto Seguro, e um senhor se aproximou dela. “Tenho que explicar que existe uma hora na peça na qual o marido da Cláudia, o Clayton, ele chama a esposa de ‘porca’, porque ela não limpa a casa ‘direito’ (na visão dele). Aliás, ele a chama de ‘porca e gorda’”. “Assim, esse senhor veio falar comigo, muito emocionado, porque, me contou, já havia chamado a esposa assim, de gorda e porca. E me confessou que não havia se dado conta do quão ofensivo tinha sido (a atitude)”.

Reconhecimento

No entanto, a atriz, dramaturga e diretora entende que se fosse citar uma função precípua do espetáculo, seria mesmo o ensejo de encorajar outras mulheres que viveram (ou vivem) uma situação similar à de Cláudia. Primeiramente, para que elas saibam que não estão sozinhas. E, claro, para que possam mudar a rota de suas vidas. “Assim, já apresentei para jovens da EJA (Educação de Jovens e Adultos), do mesmo modo, para os de ensino médio…”. Certa vez, lembra, havia uma psicóloga na roda de conversa (que eventualmente acontece após “Peixes”). Ela lembrou que nem sempre uma menina jovem consegue perceber os sinais de abuso, se dá conta de que está numa relação abusiva. “Na verdade, as mulheres da minha geração, nós percebemos muito menos. Até me arrisco a dizer que as mulheres mais novas, hoje, já estão mais aguçadas (quanto ao tema), digamos. Mas, sim, às vezes ainda demoram para perceber”.

Sendo assim, prossegue a artista, “Peixes” também tem o objetivo de mostrar que certo tipo de comportamento é, sim, abusivo. “Não é querendo ajudar (desculpa muitas vezes usada pelo abusador), não é só o jeito da pessoa – é (um comportamento) abusivo e a gente tem que cortar. Então, acho que tem isso, de trazer uma identificação para as mulheres, no sentido de que ela saiba que não está sozinha. (Propiciar) o encorajamento da identificação. E identificação no sentido de percepção do ciclo da violência, de que ela está dentro de um ciclo da violência, dentro de uma relação abusiva, para, desse modo, poder interrompê-lo”.

Retornos

Ana Regis conta que já fez mais de 100 apresentações de “Peixes”. “Em todas, sempre – sempre! – tem alguém que, ao fim da sessão, me procura e fala que se identificou, que já viveu algo similar, abusos muito parecidos. Ou, ainda, que já presenciou abusos como aqueles dentro da própria família. Repito: em todos os espetáculos. Mas, geralmente (pela situação), é uma conversa muito rápida, né? As pessoas me abraçam… Na verdade, muitas inclusive chegam chorando, é bem forte. E já recebi muitos relatos no privado das redes sociais”. Dois, em particular, a marcaram muito. “Um foi o de uma menina que foi assistir ao espetáculo junto a uma colega. Ela devia ter uns 16 anos. Aí, depois da sessão, veio me cumprimentar, me abraçou, chorando muito. No dia seguinte, voltou”, conta Ana.

Ocorre que a adolescente retornou junto a uma mulher, que Ana depois descobriu ser a mãe dela. “Ela estava ainda muito emocionada, e a outra mulher, também. No meio da semana, ela me escreveu, no direct, do Instagram, falando que havia levando a mãe porque decidiu contar a ela algo que estava ocorrendo já há algum tempo. É que o primo dessa moça, que era do interior, estava morando na casa das duas desde que ela tinha 13. Veja bem, ela estava com 16. E ele abusava dela. Ocorre que ela não tinha coragem de contar para a mãe, porque achava que essa não iria entender. Daí, assistiu a ‘Peixes’ e resolveu levar a mãe. Foi assim, então, que conseguiu contar para ela. E foi acolhida”.

Catarse

Outro caso que Ana Regis se recorda aconteceu com uma pessoa que, na verdade, a atriz, dramaturga e diretora já conhecia. “Ela já tinha trabalhado com o meu marido, mas, depois, se mudou para São Paulo. Em uma ocasião, estava em BH, para visitar a família. Como ‘Peixes’ estava em cartaz, ela foi assistir. Assim, foi uma alegria, revê-la, antes mesmo do início da peça. A gente estava conversando, super de boa – ela é muito divertida, muito espirituosa. Beleza. Assim, combinamos tomar uma cerveja após a sessão”.

Porém, ao fim, a amiga falou que não poderia mais ir, pois estava muito cansada e iria voltar para São Paulo no dia seguinte, bem cedo. “Porém, no meio da semana, recebi um direct dela, me agradecendo. Dizia que, após o espetáculo, tomou coragem e denunciou os abusadores dela e da irmã. Esse abusador era amigo e sócio do pai dela, e abusou das duas durante toda a infância, num sítio”.

Sobre Ana Regis

Ana Regis é mãe, feminista, atriz, dramaturga, diretora, professora e mestra em Teatro, pela UFMG. Fundou a Cia Cínica (1993-2000) e a Companhia Bárbara (2007-2013). Trabalhou com diretores como Rita Clemente, Mariana Lima Muniz, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Marcelo Bonnes e Julio Maciel, revezando as funções de atriz, dramaturga e assistente de direção.

Em 2018, foi contemplada os prêmios de melhor atriz e melhor texto original no IV Prêmio COPASA-SINPARC (MG-2018) com o solo “Peixes”. Integrou uma residência artística em Girona, na Espanha, dentro do festival FITAG (2019). Participou de festivais internacionais como FIT-BH, Porto Alegre em Cena e Festival de Curitiba. Em 2020, o texto de “Peixes” foi lançado em livro pela editora Javali. Em 2022, os direitos autorais de “Peixes” foram negociados com a produtora Limonada Audiovisual para se tornar um longa. O projeto foi contemplado nos editais Brasil Cine Mundi (2022) e BH nas Telas (2023), ambos para desenvolvimento de roteiro.

Em 2020 e 2021, dirigiu os experimentos de teatro digital  “Antigamente é quando?”,  com a Trupe Pierrot Lunar, e “Tudo que eu queria te dizer mas não vou”, com a plataforma Ato Junto. Em 2023, finalizou seu primeiro curta- metragem como diretora e roteirista, patrocinado através da Lei Municipal de Incentivo à Cultura. Atualmente, dirige o novo espetáculo do Grupo Armatrux.

Serviço

Espetáculo: “Peixes”

Temporada: de 14/03 a 17/03 de 2024

Local: Teatro Marília (Avenida Alfredo Balena, 586, Santa Efigênia). Bilheteria aberta de quinta a domingo, 2 horas antes da sessão.

Dias e horário: De quinta a sábado, às 20h / domingo, às 19h

Ingressos: R$ 20 (meia entrada) |R$ 40 (inteira) |R$ 25 (preço  promocional para compra antecipada até dia 13/03 pelo Sympla).

Informações: (31) 99166-7001 (whatsapp)

Classificação: 14 anos.

Duração: 50 min.

Capacidade: 256 lugares

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