
A Igreja se despediu de Papa Francisco, figura que marcou indelevelmente a história contemporânea da fé cristã. Com sua partida, encerra-se uma etapa em que a Igreja Católica assumiu, com vigor renovado, o desafio de dialogar com o mundo, permanecendo fiel ao Evangelho e, ao mesmo tempo, aberta às interrogações do tempo presente.
Um dos traços mais característicos do pontificado de Francisco foi sua concepção dinâmica da interpretação da revelação. Longe de considerar a revelação como um depósito rígido de afirmações imutáveis, Francisco evidenciou que a palavra de Deus, imersa na história humana, exige sempre uma escuta viva, atenta às novas circunstâncias e necessidades. A revelação permanece a mesma em seu núcleo de verdade, mas sua compreensão se aprofunda continuamente, num processo que a tradição da Igreja chama de desenvolvimento orgânico da compreensão da fé. Assim, com ele, o Magistério da Igreja mostrou-se consciente de seu papel não apenas de guardião da fé recebida, mas também de servidor do povo de Deus no discernimento dos sinais dos tempos.
Essa abertura não se deveu a um relativismo ou a um abandono das verdades da fé, mas sim a uma consciência renovada de que a verdade cristã é, por essência, uma verdade que se faz caminho, que interpela e transforma as culturas, sem nunca se aprisionar totalmente a formas históricas definitivas. Francisco entendeu, com sensibilidade teológica profunda, que a própria estrutura da revelação divina é interpretativa: Deus se comunica a nós por meio de palavras humanas, de gestos históricos, e a recepção desta comunicação implica sempre mediações culturais, espirituais, históricas.
A esta visão da revelação correspondeu um humanismo integral que animou todo o seu magistério. Francisco colocou o ser humano no centro de suas reflexões — não um ser humano abstrato ou reduzido a um de seus aspectos, mas a pessoa inteira, com sua corporeidade, seu psiquismo, seu espírito, sua capacidade relacional. Ele viu o homem como ser em relação: relação consigo mesmo, relação com o próximo, relação com o mundo criado, relação com Deus. Cada uma dessas dimensões foi objeto de seu cuidado pastoral e teológico.
Suas grandes encíclicas e exortações — Evangelii Gaudium, Laudato Si’, Fratelli Tutti, entre outras — revelam esta preocupação com a totalidade do humano. Em Laudato Si’, sua visão ecológica é, na verdade, expressão de uma visão unitária: cuidar da criação é cuidar do próprio ser humano, pois tudo está interligado. Em Fratelli Tutti, ele reafirma a fraternidade universal como fundamento de uma nova ordem social e política, baseada na dignidade de cada pessoa. Em Amoris Laetitia, refletindo sobre a vida familiar, mostra-se atento às fragilidades humanas, propondo um olhar de misericórdia que não abdica da verdade, mas que a interpreta à luz da compaixão evangélica.
No âmbito da espiritualidade, Francisco reafirmou constantemente a necessidade de uma relação autêntica com Deus, vivida de forma cristã, sem rigidez farisaica, mas também sem banalização. Seu chamado foi sempre para uma fé viva, encarnada na realidade da vida, capaz de unir contemplação e ação, oração e compromisso.
Com Francisco, a Igreja Católica deu ênfase mais explícita ao caráter interpretativo da revelação, mostrando que ser fiel ao Evangelho é, também, estar disposto a escutá-lo sempre de novo, à luz das questões e dos sofrimentos atuais. Isso que, em grande parte, já era vivenciado nos caminhos da pesquisa teológica, tornou-se também horizonte do próprio magistério, numa atitude de escuta, discernimento e abertura responsável.
Francisco deixa como legado uma Igreja que não teme caminhar, uma Igreja menos autorreferencial, mais missionária, mais comprometida com a promoção da dignidade humana e com a esperança de que, mesmo em meio às dores do mundo, o Evangelho continua a ser uma boa notícia para todos.
Que o Senhor, que ele serviu com simplicidade e coragem, o acolha em sua luz eterna.
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