{"id":124520,"date":"2025-04-06T07:02:16","date_gmt":"2025-04-06T10:02:16","guid":{"rendered":"https:\/\/agencia7.jornalfloripa.com.br\/agencia7\/124520"},"modified":"2025-04-06T07:02:16","modified_gmt":"2025-04-06T10:02:16","slug":"muito-doido","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/agencia7.jornalfloripa.com.br\/agencia7\/124520","title":{"rendered":"Muito do\u00eddo"},"content":{"rendered":"
\"butterfly<\/p>\n
\"butterfly
Fico do\u00eddo se n\u00e3o consigo fazer a borboleta que entrou em casa entender que o melhor lugar para ela \u00e9 l\u00e1 fora (Foto: Freepik)<\/figcaption><\/figure>\n

Confesso: eu sou muito do\u00eddo<\/span>.<\/b> Fico do\u00eddo por muitas coisas. Sou do tipo que se entristece quando uma muda de planta n\u00e3o pega, quando tomo caf\u00e9 sem a companhia de algu\u00e9m, se a carne do almo\u00e7o n\u00e3o fica no ponto, quando o livro do qual estou gostando chega ao fim ou quando o protagonista morre no final do filme. Fico do\u00eddo se n\u00e3o consigo fazer a borboleta que entrou em casa entender que o melhor lugar para ela \u00e9 l\u00e1 fora. Esses s\u00e3o alguns exemplos das dores que sinto. Como se pode ver, s\u00e3o motivos bem banais, mas que servem para mostrar o quanto sou sentido e o quanto fico do\u00eddo por qualquer coisa.<\/span><\/p>\n

Mas n\u00e3o \u00e9 s\u00f3 por essas trivialidades que me sinto assim. H\u00e1 dores que s\u00e3o maiores, mais profundas. A indiferen\u00e7a me d\u00f3i, assim como a falta de empatia e a crueldade. Ver que h\u00e1 quem durma com fome, enquanto outros esbanjam sem remorso, me d\u00f3i. Saber que h\u00e1 quem se acostume com a desigualdade como se fosse parte da paisagem tamb\u00e9m \u00e9 doloroso. A guerra no Oriente M\u00e9dio e as mortes provocadas pelo \u00faltimo terremoto s\u00e3o de doer.<\/span><\/p>\n

Fico do\u00eddo ao ver crian\u00e7as sem escola, pedindo dinheiro nos sinais; ao ver trabalhadores sem esperan\u00e7a e idosos sem dignidade. O discurso vazio de pol\u00edticos que n\u00e3o enxergam as vidas por tr\u00e1s dos n\u00fameros \u00e9 doloroso, assim como o descaso diante dos sinais de alerta da natureza sobre o desequil\u00edbrio clim\u00e1tico. O desprezo pela cultura, pela arte e pela educa\u00e7\u00e3o tamb\u00e9m machuca.<\/span><\/p>\n

\u00c9 doloroso ver bibliotecas fechando, teatros esvaziados, artistas lutando para sobreviver e professores desvalorizados, como se tudo isso fosse sup\u00e9rfluo, como se a alma de um povo pudesse resistir sem alimento. A falta de incentivo e o descaso fazem com que muitos enxerguem o conhecimento e a sensibilidade como amea\u00e7a. Mas uma sociedade sem cultura, sem arte e sem educa\u00e7\u00e3o est\u00e1 condenada a viver \u00e0 margem de si mesma. Saber que muitos se acostumaram com o que deveria ser insuport\u00e1vel \u00e9 dolorido.<\/span><\/p>\n

Ser do\u00eddo \u00e9 sentir o mundo com a pele descoberta, sem prote\u00e7\u00e3o. \u00c9 como disse Rachel de Queiroz: \u201ce eu sou essa gente que se d\u00f3i inteira porque n\u00e3o vive s\u00f3 na superf\u00edcie das coisas\u201d. No meu caso, vivo nas profundezas e \u00e9 sempre mais dolorido. \u00c9 l\u00e1 no fundo que se encontram as verdades mais duras, aquelas que muitos preferem ignorar.<\/span><\/p>\n

Ser do\u00eddo pode parecer fraqueza, mas talvez seja justamente o contr\u00e1rio, uma prova de que ainda n\u00e3o endureci, de que ainda me importo. Prefiro assim. Porque, no fim das contas, doer \u00e9 uma forma de sentir, e sentir \u00e9 o \u00fanico jeito de realmente estar vivo.<\/span><\/p>\n