As impressões sobre Grupo Galpão em (Um) Ensaio sobre a Cegueira

Ao entrar no Galpão Cine Horto, o público encontra o espaço cênico vazio. Nenhum cenário, apenas os atores e um cone de trânsito. É nesse palco nu que o Grupo Galpão dá início ao jogo de (Um) Ensaio sobre a Cegueira, adaptação do romance de José Saramago escrita e dirigida por Rodrigo Portella.

Logo antes da peça começar, o ator Eduardo Moreira faz um pedido à plateia: que desligue mesmo os celulares e se permita uma imersão de duas horas e meia. O convite antecipa o que virá. O espetáculo é, acima de tudo, uma experiência baseada na imaginação. 

Não há truques. Tudo é exposto. Atores carregam objetos, manejam a iluminação, constroem cenas diante do público, criam imagens em nossa cabeça com gestos simples. Uma garrafa d’água, por exemplo, vira um símbolo, assim como a ação de um ventilador que vira páginas de um livro. Uma fala basta para que uma ação seja acreditada. O teatro assume o devido lugar como o espaço da invenção partilhada.

Imaginai

Essa opção pela teatralidade explícita tem consequência direta na encenação. O jogo entre o visto e o imaginado ganha força em (Um) Ensaio sobre a Cegueira. O diretor evita naturalismos e dá espaço para que a plateia complete as lacunas. 

Em cenas de violência ou sexo, por exemplo, a sugestão se sobrepõe à exposição. O que se vê talvez seja menos importante do que o que se imagina. Não deixa de ser uma escolha ética e poética da direção: proteger a imaginação como território ainda livre, diante de um mundo cada vez mais mediado por máquinas.

Em determinado momento da peça, esse pacto entre cena e plateia se expande. O público é chamado a compor a cena. Algumas pessoas vão para o “palco”, os olhos são vendados e, a partir de então, representam os novos grupos de cegos que chegam ao manicômio. 

A movimentação desses corpos no espaço altera o desenho cênico. O gesto é simples, mas carrega força simbólica. Sendo assim, reproduz, dentro da cena, a progressão da pandemia descrita no romance. E desloca o espectador da posição de observador para a de participante.

Essa participação modifica também a percepção de quem assiste. Ao ver pessoas comuns assumindo papéis naquele contexto de colapso, acentua-se o efeito de espelhamento. Então,há um deslocamento da ficção para o real. Inclusive no espectro político.

Dramaturgia expandida

A trilha sonora original de Federico Puppi, músico e diretor musical do espetáculo, reforça a imersão. Sons são criados ao vivo e funcionam como extensão sensorial da cena. Em um espetáculo que trata de cegueira, o som assume protagonismo. Há uma espécie de compensação perceptiva. Quando a visão falha, a escuta se amplia. A trilha atua como camada narrativa. Não sublinha o que acontece. Amplifica.

O figurino criado por Gilma Oliveira também participa da dramaturgia. No início, os trajes identificam perfis sociais. Com o avanço da peça, esses papéis se desfazem. O figurino se desgasta. As roupas se transformam em vestígios da queda. A progressiva deterioração visual acompanha o percurso dos personagens e reforça a sensação de colapso coletivo.

Juntos sempre mais fortes

Antonio Edson, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André e Simone Ordones atuam em uníssono. Ou seja, o Grupo Galpão reafirma, aqui, uma marca da própria trajetória de mais de quatro décadas: a construção de cena como criação compartilhada. Há sintonia nos ritmos, nos deslocamentos, nos silêncios. A partilha do jogo entre os atores sustenta o fôlego – e a dinâmica – da encenação. E é isso que mantém a energia constante ao longo das duas horas e meia.

Há momentos de forte impacto. Um deles é a cena em que as mulheres retornam de um pavilhão onde sofreram abusos. A construção da sequência dispensa palavras e resulta em uma imagem de rara potência. É um dos pontos altos do espetáculo. Para ver e, principalmente, sentir.

Por fim, (Um) Ensaio sobre a Cegueira reafirma o valor da história. Em contraste com parte da produção teatral contemporânea, o Grupo Galpão opta por contar uma narrativa com começo, meio e fim. Isso significa confiar na força do texto. Ou seja, a peça resgata o gesto ancestral de narrar. Lembra que contar e ouvir histórias ainda nos conecta, ainda nos transforma. Durante duas horas e meia, essa conexão se mantém. E é isso que sustenta a experiência. Viva o bom teatro.

Espetáculo visto no dia 01 de maio de 2025.

(Um) Ensaio sobre a Cegueira – Grupo Galpão
Temporada: até 1º de junho
Sessões: quarta a sábado, às 20h; domingo, às 19h
Local: Galpão Cine Horto (Rua Pitangui, 3613 – Bairro Horto – Belo Horizonte – MG)
Ingressos: Sympla (www.sympla.com.br/grupogalpao)
Classificação indicativa: 18 anos (para a modalidade de ingresso experiência)

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