O fantasma do golpismo e da ditadura torna mais urgente ver “Ainda Estou Aqui”

“Ainda Estou Aqui”: mais necessário do que nunca

O longa-metragem “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, é o acontecimento cinematográfico mais importante para o país dos últimos dez anos. É candidato do país a uma vaga no Oscar de 2025. Foram alcançados 1 milhão de espectadores até o último final de semana nas salas de cinema no Brasil.

Dados de bilheteria, divulgados nesta segunda-feira (18) pela ComScore, mostram que a produção já arrecadou R$ 23,5 milhões em ingressos. Segundo informações da CNN, o filme será exibido por uma semana nas salas de cinema de Nova York e Los Angeles a partir do dia 17 de janeiro de 2025 e será lançado nas demais cidades dos Estados Unidos no dia 14 de fevereiro.

A obra conta a hercúlea e real história de Eunice Paiva (interpretada por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, maravilhosas como sempre), mãe de cinco filhos que estudou Direito e se reinventou como uma das mais importantes ativistas dos Direitos Humanos no Brasil depois do assassinato de seu marido, Rubens Paiva, ex-deputado cassado pelo regime militar em 1964 (interpretado por Selton Mello), pela ditadura militar em 1971.

Em setembro, o filme ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, entre muitas aclamações em diversos países e festivais, como o de Vancouver, Canadá, e também o de Biarritz, França, dedicado às produções da América Latina.

Walter Salles conheceu a família, como fez questão de destacar ao subir ao palco na cerimônia de abertura do festival na Gare du Midi, em Biarritz. “Era uma família que morava no Rio de Janeiro, não muito longe da minha casa, e eu fiquei amigo de uma das cinco crianças quando eu tinha 13 anos“, disse o diretor, minutos antes da primeira projeção de seu novo filme na França. “Eu me sentia perdido nesse país com falta de liberdade e, naquela casa, eu descobri a música brasileira e aprendi que as conversas sobre política podiam acontecer entre todos, que não havia diferença entre conversa de adulto, de criança e de adolescente, o que era muito diferente do que acontecia na minha casa”, lembrou, discursando em francês.

Em entrevista de 2012 ao tabloide Zero Hora, Marcelo Rubens Paiva recorda as reminiscências de sua infância e os motivos da prisão, tortura e assassinato de seu pai. O escritor e dramaturgo, autor do livro que foi a base para o roteiro do longa-metragem de Walter Salles, trouxe revelações e esclarecimentos sobre a trajetória do pai.

Antes mesmo do golpe que derrubou o presidente João Goulart, em março de 1964, Rubens Paiva já estava marcado pelos generais linha-dura. Deputado pelo PTB (o antigo de orientação trabalhista, não o híbrido atual), foi vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou as ligações do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) com a CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos.

Já em 1963, o Ibad era um ninho de conspiradores contrários ao governo Goulart, inspirados pelo general Golbery do Couto e Silva – depois mentor da ditadura – os integrantes do Ibad alarmavam que o país estava à beira do comunismo. Ao mesmo tempo, recebiam dólares americanos para financiar o golpe de Estado. “Meu pai tinha cópias de cheques que iam para o Ibad e o Ipes”, destaca Marcelo, referindo-se ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), outra entidade ocupada em detratar o governo civil.

Alinhado com os líderes trabalhistas João Goulart e Leonel Brizola, Rubens Paiva teve seu mandato cassado logo após o golpe de 1964. Exilou-se, mas voltou ao Brasil, fazendo oposição política à ditadura, ajudando perseguidos a conseguir exílio no exterior, especialmente no Chile, então sob o regime socialista de Salvador Allende.

Com 11 anos em 1971, Marcelo lembra que a casa da família, no Leblon, no Rio, recebia visitas de políticos cassados e adversários da ditadura. Às vezes, era o refúgio de quem estava sendo caçado pela repressão. “Na minha casa, havia roda de pôquer com Fernando Henrique Cardoso, Paulo Francis e outros. Meu pai era amigo do Antônio Cândido, do Antônio Callado, do pessoal do Pasquim”, conta o escritor.

Rubens Paiva foi detido por soldados da Aeronáutica em 20 de janeiro de 1971 e depois levado para o Departamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), porque se comunicava com exilados brasileiros no Chile. Uma mulher foi presa no Aeroporto do Galeão com uma carta trazida do Chile para ele.

Marcelo admite que o pai, naquele momento, colaborava com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) – uma das organizações guerrilheiras mais ativas. Rubens Paiva não era do MR8, mas sentia-se no dever de ajudar seus membros. Ele fora eleito deputado com votos dos estudantes, que eram maioria nos grupos armados. “É claro que ele não participou de ação armada, nem sei se concordava com isso. Mas ajudava aqueles garotos a sair do país”, diz Marcelo.

Formado em engenharia, Rubens Paiva foi vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE). Participou de lutas estudantis e das campanhas nacionalistas, como a da criação da Petrobras. Poderia ter continuado no exílio após 64, mas preferiu regressar para continuar se opondo ao regime militar.

“Foram vários elementos que fizeram com que acreditassem que tinham nas mãos um peixe grande, o meu pai. E havia um acerto de contas. Assim que meu pai entrou na Aeronáutica, um torturador lhe disse: “Pois é, deputado, finalmente vamos nos entender com o senhor” – relata Marcelo.

Eunice e Rubens Paiva

Ainda reverberando internamente e tentando assimilar o impacto de uma sala de cinema absolutamente lotada, à procura de uma história real de uma família de classe média, cheia de sonhos, filhos e vida por viver.

Incrédulo ao observar o recrudescimento e as tentativas de um novo golpe militar e a impunidade dos criminosos ainda soltos, fomentando e conspirando, cooptando os mais humildes de alma e juízo, que sirva como alerta antifascista para as novas gerações e um carinho tardio nos corações destroçados pela Ditadura Militar.

O roteiro e a reconstituição de época impecáveis souberam amarrar um monte de pontas soltas para centenas ou milhares de famílias progressistas dos anos 70, incluida a minha, ceifadas pelas garras fascistas do regime militar. Deformadas, traumatizadas… As Fernandas estão espetaculares como sempre; não me surpreenderia se Montenegro recebesse um Oscar por seus poucos minutos em cena. Um belíssimo recorte de época tão conturbada e dolorida.

A trilha, impecável, tem como destaque “É preciso dar um jeito, meu amigo”, canção de protesto — sim, você leu direito — de Erasmo e Roberto Carlos e apresentada pelo Tremendão no sétimo álbum do artista, Carlos, Erasmo…, lançado no segundo semestre de 1971, ano em que se passa o início do longa. “As crianças são levadas / Pela mão de gente grande / Quem me trouxe até agora / Me deixou e foi embora como tantos por aí”, diz um trecho da letra.

“Ainda Estou Aqui” fala de todos e para todos: Andrés, Danielas, Marias, Ricardos, Manueis, Ernestos, Martas, Marcelos, Paulos, Rubens, Eunices, Carmitas, Rodrigos, Terezas, Anas, Luíses, Carlos e tantos Joãos entre milhares de sonhos e nomes apagados e marcados em nossa história de pesadelos, alguns bem atuais. Espectadores deixaram a sala em lágrimas, inclusive eu agora escrevendo, pois esse retrato da história deixou minhas memórias à flor da pele ao me refletir no espelho de Eunice e sua família.

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