Adolescência e o plano-sequência da dor que não se edita

“O meio é a mensagem.” A frase cunhada por Marshall McLuhan na década de 1960 cabe como uma luva para pensarmos sobre Adolescência, minissérie britânica que chegou à Netflix no dia 13 de março e tem arrebatado espectadores ao redor do mundo desde então. A trama gira em torno de Jamie Miller, um adolescente de 13 anos acusado de matar uma colega da mesma idade. Mas não espere nada convencional na forma como essa história policial é contada.

A essa altura, você já deve saber que tudo se passa em plano-sequência — ou seja, sem cortes. Ao abrir mão da edição, a linguagem da série não apenas transmite a história: ela a encarna. O tempo contínuo nos arrasta para dentro da experiência adolescente com uma intensidade rara. Não há pausas, respiros ou intervalos — apenas a travessia, vertiginosa e inteira, daquilo que se sente antes mesmo de se compreender.

Experiência narrativa

Quando McLuhan diz que “o meio é a mensagem”, ele está propondo que a forma como uma mensagem é transmitida influencia mais a percepção do conteúdo do que o conteúdo em si. Ou seja, a linguagem, o suporte e a técnica moldam o significado. Em Adolescência, o uso do plano-sequência não é apenas uma escolha estética — é a própria estrutura da experiência narrativa. É o meio. E é justamente aí que reside sua força: ao eliminar os cortes, a série nos insere no fluxo contínuo da ação, impedindo qualquer distanciamento confortável. O resultado é uma imersão crua, visceral, que espelha com precisão a própria experiência adolescente — confusa, acelerada, sem intervalos claros de compreensão.

Aplicando McLuhan: o plano-sequência (meio) não apenas transporta a história (mensagem), ele é a mensagem. Ele diz algo sobre o que é ser adolescente por meio da forma como essa adolescência é mostrada. A ausência de cortes vira metáfora para a intensidade emocional dessa fase da vida, vivida em atropelo, sem edição possível.

Estrutura

Criada por Jack Thorne e Stephen Graham, com direção precisa de Philip Barantini, Adolescência é uma minissérie de quatro episódios independentes, mas profundamente conectados por temas universais como afeto, exclusão, pertencimento e dor. O plano-sequência aqui não é artifício técnico, mas linguagem emocional. O que se vê é uma coreografia entre câmera, atores e espaço — um teatro da vida em que cada movimento conta e cada silêncio pesa.

A câmera não escapa. Não oferece descanso. E, com isso, convida o espectador a ocupar o mesmo espaço de tensão, confusão e sensibilidade que marca a adolescência — esse território onde tudo se sente antes de se entender.

Não há truques. Há precisão. Técnica a serviço de uma narrativa que exige entrega: dos realizadores, dos atores, de quem assiste. Adolescência é uma obra construída na imersão. A ausência de cortes não é um capricho, mas um compromisso ético com o tempo das emoções. Cada episódio acompanha um jovem diante de dilemas urgentes: violência doméstica, culpa, desejo, solidão, morte. São vivências que não cabem em resumos. Precisam ser experienciadas.

Elenco

O elenco é um dos grandes trunfos da série. Owen Cooper interpreta Jamie Miller com uma vulnerabilidade bruta, desprotegida. Stephen Graham — que também assina a criação da série — vive o pai, Eddie Miller, com contenção dolorosa, onde os silêncios falam mais que qualquer diálogo. Erin Doherty, como a psicóloga Briony Ariston, representa o ponto de escuta num mundo em que até os adultos estão feridos. São atuações que dispensam grandiloquência. Tudo pulsa com uma verdade rara.

Se o primeiro episódio nos lança no impacto e o segundo busca desesperadamente uma explicação, o terceiro e o quarto mergulham mais fundo nas águas turvas do sentimento.

É no quarto episódio, centrado no luto e nas feridas abertas das relações familiares, que a série alcança sua densidade máxima. A atmosfera criada não é de resolução, mas de permanência. É quando Adolescência abandona qualquer pretensão de resposta e simplesmente permanece — como quem respira junto com o outro, sem exigir palavras.

Apesar de

E é aí que a série faz lembrar o que Clarice Lispector escreveu em Uma aprendizagem o livro dos prazes. É preciso viver apesar de. 

“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de.

Apesar de, se deve comer.

Apesar de, se deve amar.

Apesar de, se deve morrer.

Inclusive muitas vezes é o próprio ‘apesar de’ que nos empurra para a frente.”

Clarice Lispector

Assim, é esse “apesar de” que sustenta o episódio final. E é por isso que ele é tão bonito, tão potente. Porque reconhece que a adolescência, como a vida, não se vive depois. Vive-se no meio do turbilhão. Apesar de.

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