Projeto de novo Código Civil exclui cônjuge de herança; veja o que está em discussão

A comissão de juristas responsáveis pela elaboração do anteprojeto de Reforma do Código Civil entregou ao Senado Federal, no final de abril, o documento final com todas as alterações propostas na lei. Mas uma das mudanças tem chamado muita atenção de advogados e gerado polêmica por mudar a lei de sucessões, excluindo os cônjuges do rol de herdeiros necessários.

Pela legislação atual, os herdeiros obrigatórios são compostos por descendentes (filhos e netos), ascendentes (pais e avós) e os cônjuges. Os cônjuges garantem uma parte da herança legítima, que corresponde a 50% do patrimônio do falecido. Com a retirada do cônjuge, ele deixa de receber a herança. No entanto, ele não perde o direito à meação, que determina que os parceiros têm direito à metade do patrimônio construído durante a relação.   

Fernanda Haddad, advogada especialista em Gestão Patrimonial, Família e Sucessões do Trench Rossi Watanabe, lembra que o texto da reforma ainda está na fase de anteprojeto, que precisa ser aprovado pelo Congresso. Mas ela frisa que a comissão jurídica que elaborou o documento é muito respeitada e levou em consideração as várias configurações que existem hoje nos casamentos. “Hoje, as pessoas se casam, se separam e muitas delas nem sabem qual o melhor regime de bens. Agora será preciso estar mais atento, caso a mudança prospere”, afirma.

No entanto, as novas regras continuam travando os 50% dos herdeiros necessários, para que filhos não percam o direito. “Porém, no Brasil, ainda há pouca flexibilidade no que diz respeito às leis sucessórias. Nos Estados Unidos, a pessoa pode deixar sua herança para quem quiser, até para um cachorro, bastando fazer um testamento”, acrescenta a especialista.

Planejamento sucessório

Por isso, cada vez mais o planejamento sucessório mostra ser um instrumento necessário. Sob o novo texto do Código Civil em discussão, a possibilidade é que haja uma explosão nos registros de testamento. “Além disso, as pessoas vão pensar melhor no regime que adotarão na hora de se casar. O mais comum é a comunhão parcial, mas pode ser estabelecida a comunhão total ou a separação total de bens”, afirma, frisando que, na parcial, o cônjuge sempre terá direito à meação.

O que comunica na comunhão parcial, regime adotado inclusive para quem tem união não formalizada, são os bens adquiridos ao longo do relacionamento. Mas o restante do patrimônio, que não é comunicável, como heranças e patrimônio construído anteriormente, pode deixar de ser do herdeiro, caso a nova regra seja adotada.

Por isso, casais que pensam em contemplar o parceiro terão de fazer testamentos separados. E, sim: será preciso falar sobre morte, um assunto que desagrada muita gente. “A mentalidade no país está mudando muito desde a pandemia de Covid-19, quando houve um aumento significativo dos testamentos”, diz Fernanda Haddad.

Segundo dados levantados pelo Colégio Notarial do Brasil, o número de testamentos cresceu no Brasil durante a pandemia. Entre 2012 e 2021, os registros saltaram de 38.566 para 52.275, aumento de 35,5%. Só em São Paulo, os documentos passaram de 7.518 para 10.977 no mesmo período, alta de 46%. Desde maio de 2020, testamentos começaram a ser feitos 100% online, por videoconferência. Em 2022, serviços de testamento, inventário e partilha alcançaram número recorde nos cartórios do Brasil.

Maior flexibilidade

A reforma do Código Civil permitirá que as pessoas saiam da regra geral e possam escolher melhor o que desejam fazer com seu patrimônio quando partirem, planejando o processo com maior flexibilidade para contemplar herdeiros de diversos relacionamentos.  “Ao tirar o cônjuge do rol dos herdeiros necessários, vai implicar ter de fazer algo, se quiser incluir alguém”, afirma Fernanda Haddad.

Para a advogada, o assunto chama tanta atenção porque a sociedade brasileira ainda é pouco educada sobre seus direitos e deveres. “Muitos não sabem nem a regra atual, imagina no futuro. Do mesmo jeito que temos de nos planejar financeiramente, teremos de fazer isso em termos de direitos, se quisermos garantir o futuro de cônjuges”.

Mas ela alerta que fazer um testamento também exige atenção, com o formato escolhido. Se for público, é preciso ter testemunhas para garantir a validade das disposições e não pode deixar obrigações ilícitas, como dispor da parte exclusiva de herdeiros necessários e estar tudo certo no que diz respeito às capacidades mentais. O notário precisa documentar que recebeu a pessoa em vida, e, se for idoso, ter laudos médicos de que a pessoa estava apta a tomar decisões, deixando o mínimo espaço para questionamento. E será essencial pensar também no regime adotado no casamento.

Regimes de casamentos disponíveis atualmente

  • Comunhão parcial de bens;
  • Comunhão universal de bens;
  • Separação convencional de bens;
  • Separação obrigatória de bens, a partir dos 70 anos (que recentemente passou a ser flexibilizada também por decisão do Supremo Tribunal Federal)
  • Participação final nos aquestos (menos conhecido, este regime prevê que cada cônjuge possua um patrimônio próprio, cuja administração é exclusiva de cada um. Os bens adquiridos durante o casamento terão a participação conforme o volume desembolsado por cada um).

Avanço

Para Laísa Santos, advogada especialista em Planejamento Patrimonial e Sucessório, a proposta de excluir cônjuges da lista de herdeiros necessários representa avanço à sociedade, por contemplar as novas formas de família. “Essa proposta vai ao encontro das mudanças sociais, atendendo principalmente aos desejos das famílias reconstituídas, aquelas compostas pela união de um casal com filho(s) de relacionamentos anteriores, trazendo maior segurança aos envolvidos quanto à destinação dos bens”, afirma.

A advogada Juliana Assolari, sócia do Lassori Advogados, acrescenta ainda que a exclusão de cônjuge como herdeiro já era um pleito da sociedade dentro dos tribunais. “Se uma pessoa deseja se unir com alguém, e já tenha patrimônio e filhos, é legítimo acordar com seu novo cônjuge que o patrimônio angariado até aquela data pertencerá exclusivamente aos filhos quando do seu falecimento”, explica.

A alteração proposta não significa um prejuízo aos cônjuges, mas ampliação das possibilidades do casal na organização de seu patrimônio, após seu falecimento, na opinião da advogada Janaína De Castro Galvão, sócia na área de Contencioso Cível e Resolução de Conflitos, da Innocenti Advogados.

Quais são os perigos?

Por outro lado, no direito brasileiro, a proteção ao cônjuge ou convivente na sucessão vem do fato histórico de que as esposas não tinham a gestão de seu patrimônio após o casamento, sendo a titularidade sempre passada para o nome do marido.

Segundo a advogada Suzana Castelnau, sócia do escritório Donelli, Abreu Sodré e Nicolai Advogados (DSA), ainda existem pessoas que se casaram nessa condição e que estão vivas ou que passaram recentemente por processo de sucessão. “A manutenção desse dispositivo na nossa legislação tenta, de alguma forma, proteger essas mulheres”, alerta, mesmo admitindo que os tempos mudaram e as relações evoluíram, assim como os formatos de família.

O sócio fundador do escritório A. Soares de Oliveira Advogadas e Advogados, Aílton Soares de Oliveira, é mais categórico ao alertar sobre os riscos. “A medida não é acertada exatamente por desproteger essas pessoas. A construção e acumulação de bens é fruto de um esforço comum, que não pode ser esquecido. E nem sempre os descendentes participam da acumulação de patrimônio como um cônjuge. Acho um grande retrocesso que causará um número imenso de ações questionando isso nos tribunais”, afirma o especialista em Planejamento Sucessório e Contencioso de Família.

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