Tarifas de Trump: contágio no Brasil é menos comercial e mais financeiro, diz Canuto

Mais do que o impacto comercial direto, o canal de contágio da política de tarifas sobre produtos importados estabelecida pelo presidente americano Donald Trump sobre o Brasil deve ser financeiro – ou seja, pela via dos juros mais altos.

A avaliação é do economista Otaviano Canuto, que foi vice-presidente no Banco Mundial e diretor executivo no FMI, e hoje é pesquisador Policy Center for the New South e do Brookings Institution.

“Na margem, já está ocorrendo uma desaceleração do crescimento do PIB nos EUA e uma pressão de inflação maior”, disse Canuto ao programa InfoMoney Entrevista. “Significa que o dilema enfrentado pelo Fed [Federal Reserve, banco central americano] entre nível de atividade econômica, emprego e inflação piorou na margem, reduzindo a probabilidade de queda adicional na taxa básica de juros”.

Canuto afirma que “as tarifas definitivamente não são boas para a economia americana, e muito menos para a economia global”. Diz também que o Brasil pouco poderia fazer em resposta, já que sua capacidade de retaliação é limitada. “Minha esperança é que o Brasil não seja um foco importante”.

Leia os principais trechos da entrevista abaixo:

IM – Um tema que está dominando a agenda econômica global é a política de tarifas para produtos importados estabelecida pelo presidente Trump nos Estados Unidos. Até aqui, o Brasil foi atingido especialmente pela tarifação de aço e alumínio. Na sua visão, o que mais vem pela frente com reflexo para nós?

Canuto – Vem mais por aí. Nesta quarta (2) inicia a fase de implementação da política que Trump chamou de reciprocidade tarifária, uma quebra definitiva do arcabouço de negociação montado no pós Segunda Guerra Mundial e particularmente com a OMC [Organização Mundial do Comércio].

Esse arcabouço tinha como componente básico a chamada cláusula da nação mais favorecida, segundo a qual qualquer coisa que um país resolva fazer individualmente com suas tarifas não pode ser aplicado de maneira bilateral sobre um país específico. Se você quer punir alguém e estabelece uma tarifa, essa tarifa tem de ser a mesma para todos os outros. É o princípio multilateral, ao contrário do bilateral.

“Trump literalmente jogou isso para o espaço ao pôr ênfase em taxas bilaterais. A reciprocidade tarifária vai olhar para cada país e tentar punir de acordo com as tarifas lá do outro lado. O Brasil é um país com tarifas altas, isso é inegável. Quando chegar o momento dessa agenda do Trump olhar e endereçar o Brasil, é isso que tende a ocorrer”

Com um detalhe: nós não somos prioritários, porque um dos desejos equivocados do Trump é reduzir o déficit em conta corrente dos Estados Unidos, e ele acha que vai conseguir atacando bilateralmente saldos com países. Mas isso está fadado ao fracasso, porque o déficit em conta corrente americano depende de variáveis macroeconômicas, e não de saldos comerciais bilaterais.

No caso do Brasil, os setores onde as tarifas americanas vão subir não serão aqueles em que somos competitivos. O problema é se naqueles setores onde o Brasil é competitivo nos Estados Unidos as nossas tarifas um pouco mais altas possam vir a ser aplicadas ao que a gente exporta.

Outro fator são as referências de Trump ao Brasil como um país dos BRICS, a quem ele aludiu como querendo substituir o dólar nas transações internacionais, o que a rigor não está correto. O Brasil não vai propor a criação de moeda dos BRICS, isso é uma uma fantasia. São uns tontos no Brasil que de vez em quando falam nisso. Mas mesmo uma substituição limitada para fins de transações bilaterais com a China pode acabar virando uma desculpa para Trump dar uma uma cacetada tarifária no Brasil.

IM – Como o Brasil poderia reagir?

Canuto – Devo dizer que não há muito que a gente possa fazer além de algumas retaliações não muito abrangentes. O Brasil tem um pequeno déficit hoje em dia com os Estados Unidos, e minha esperança é que justamente por conta desse saldo favorável a eles o Brasil não seja um foco importante. Nosso limite de retaliações é limitado.

O que me preocupa mais com as tarifas americanas é que, na margem, já está ocorrendo uma desaceleração do crescimento do PIB nos EUA e uma pressão de inflação maior. Não estou falando de queda do PIB ou de recessão, mas uma desaceleração, porque outros fatores dinâmicos da economia americana ainda vão continuar puxando para cima. Mas a tendência é de crescimento para baixo.

Significa dizer que o dilema enfrentado pelo Fed [Federal Reserve, banco central americano] entre nível de atividade econômica, emprego e inflação piorou na margem, reduzindo a probabilidade de queda adicional na taxa básica de juros. Na margem, as tarifas definitivamente não são boas para a economia americana e muito menos para a economia global.

“Esse é o canal que influenciará mais a economia brasileira: o canal financeiro, dos juros mais altos nos EUA, mais do que o impacto comercial direto”

IM – O senhor vê, então, efeitos sobre a inflação americana na margem, mas não um choque de preços?

Na margem, mas podem ser significativos. Como vimos depois da pandemia ou dos choques derivados da invasão da Ucrânia, o que muitos economistas consideravam temporário não foi revertido facilmente. Isso pode contaminar expectativas e aí vira inflação para valer.

O efeito imediato das tarifas, em geral, é o choque de preços, com alguma probabilidade de que eleve de maneira mais permanente a taxa de inflação, exigindo juros mais altos.

IM – Num artigo publicado há poucos anos, o senhor dizia que a integração econômica internacional havia sido fundamental como uma alavanca de prosperidade global desde a década de 1990. Considerando o cenário atual, com os efeitos da nova política de tarifas nos EUA e no mundo, podemos falar em um freio do crescimento econômico global?

Canuto – Sim, com um detalhe. Houve um período de hiperglobalização, que foi bom não apenas em termos de crescimento global, mas principalmente crescimento da parte de baixo da pirâmide de renda global.

Quase um bilhão de pessoas saíram da extrema pobreza por conta do crescimento propiciado nesse período. Isso não quer dizer que foi para todo mundo. A África Subsaariana ficou um pouco à margem disso, mas, mesmo descontando a China, o número foi grande.

Até a gente, mesmo não nos beneficiando diretamente da globalização, também navegamos nessa onda por meio do preço das commodities e da dinâmica do mercado de produtos agrícolas e minerais. A renda mundial ficou melhor distribuída, houve queda na pobreza, difusão de tecnologia. Todos os casos de sucesso que assistimos nos países emergentes e em desenvolvimento tiveram como base o comércio e a tecnologia globalizada através desse comércio.

Foi tudo perfeito nesse sentido? Não. A parcela de baixo da pirâmide de renda em vários países avançados, como os EUA, não se beneficiou. A rigor, os ganhos da globalização foram principalmente concentrados na parte de cima da pirâmide nos Estados Unidos.

“Além disso, deve-se levar em conta que as mudanças tecnológicas ocorreram sem um correspondente ajuste no lado da capacitação da população de baixa renda, o que explica como os americanos do interior ficaram estagnados economicamente. Foi isso que alimentou as bandeiras populistas, como as de Trump, o Brexit teve sucesso na Inglaterra se alimentando disso, e assim por diante”

Bem ou mal, com essa ressalva da parte mais baixa da pirâmide de renda em alguns países avançados, a globalização foi benéfica no geral. A eventual reversão parcial a que estamos assistindo, a fragmentação do comércio global, entre outros fatores, não são uma boa notícia. Isso dificultará a reprodução daquela experiência de crescimento e desenvolvimento para os países que estão chegando agora. Definitivamente, não é uma boa notícia.

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