“O Livro da Discórdia” usa o elemento humor para abordar temas atuais

Dirigido por Baya Kasmi, o filme francês “O Livro da Discórdia, que tem como espinha dorsal uma família argelina, está em cartaz no Cineart Ponteio

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Um escritor de origem argelina lança, aos 45 anos, um romance que, contrariando as próprias expectativas, vai angariando destaque na mídia. Não bastasse, arrebanha a mais importante premiação literária da França, o Goncourt. Não só. O livro também torna-se um sucesso de vendas (lembrando que uma coisa – reconhecimento da crítica – nem sempre está relacionada à outra). À primeira vista, essa enunciação de “O Livro da Discórdia”, filme de Baya Kasmi em cartaz no Cineart Ponteio, pode até fazer estabelecer um paralelo com “American Fiction”. O longa-metragem de Cord Jefferson, você sabe, acabou levando o Oscar de Roteiro Adaptado, no último dia 10 de março, em Los Angeles.

E sim, que seja dito, há alguns pontos em comum, a começar do fato de ambos tratarem recortes de um mesmo tema, o racismo. E, ainda, relações familiares. No caso de “O Livro da Discórdia”, porém, a tônica recai sobre o racismo praticado contra os árabes, na Europa. Da mesma forma, ambos os filmes também trabalham bem as respectivas narrativas pelo viés do humor.

Reação familiar

Em “O Livro da Discórdia”, Youssef Salem (Ramzy Bedia) mora em Paris, e, malgrado já ter publicado duas biografias, não angariou êxito no meio literário. Na verdade, tampouco grana. Tudo muda a partir do momento em que ele lança o primeiro romance, claramente (mas não declaradamente) autobiográfico, ainda que ele tenha feito, aqui e ali, algumas pequenas distorções da realidade – assim, um dos irmãos de Youssef sequer é citado, enquanto a irmã, lésbica, aparece na obra como um homem gay.

O grande problema é que, ao ler a obra, os irmãos de Youssef percebem que se trata da trajetória da família e não gostam nem um pouco do que o conteúdo do livro, parágrafo por parágrafo, vai revelando daquele círculo íntimo. Um deles, claro, se incomoda por, como dito, sequer ser mencionado, enquanto as duas irmãs acham que Youssef está expondo a família de forma tão desnecessária quanto constrangedora.

Fato é que, a partir do momento em que as vendas do livro começam a disparar e Youssef passa a ser convidado para ir a programas de TV, a fim de discutir a obra; emerge, no próprio autor, o medo de que os pais dele travem contato com o citado conteúdo. Pois, daí, é líquido e certo que ficarão feridos e magoados.

O choque tóxico

A narrativa do filme “O Livro da Discórdia”, na verdade, é disparada por um acontecimento fantasioso. Ou seja, uma espécie de lenda, que chega ao conhecimento de um Youssef ainda criança: o choque tóxico. Na história fictícia, dois namorados violam a premissa da moral e dos bons costumes de que o sexo só pode ser consumado após o casamento. E, assim, são exemplarmente castigados. Desse modo, a mente em formação do menino é abalada pelo medo do dito “pecado”. E, consequentemente, fica a “lição” de que a sexualidade, a libido, precisam, sim, ser represadas. A qualquer custo.

No entanto, a natureza humana e seus impulsos por vezes irrefreáveis nem sempre estão alinhados ao que preconizam as regras. Assim, mesmo em meio aos códigos morais rígidos, os integrantes da família encontram maneiras – sutis ou não – de assegurar momentos de prazer, seja numa prosaica piscina, seja permitindo-se travestir, ou mesmo insinuar uma traição conjugal. Do mesmo modo, a relação homossexual é disfarçada sob o véu da “amizade” entre duas mulheres, para que, desse modo, as duas partes possam viver sob o mesmo teto sem causar “vergonha” à família.

Segredos revelados

Tudo prosseguiria assim, por debaixo dos panos, não viesse o livro de Youssef a escancarar segredos e a provocar a discórdia – a palavra do título em português. Ocorre que essa discórdia não se restringe à família, mas – e evidentemente por outros motivos – se espraia também no meio literário. Isso porque, em meio a tudo, entram em cena outras ramificações do tronco central do filme. Desse modo, para citar um exemplo, em uma mesa-redonda de um programa literário de TV, Youssef é acusado de macular a imagem das mulheres árabes.

Uma isca para o pai

Já a opção deliberada de Yussef em deixar, aqui e ali, no livro, erros ortográficos (no caso, para provocar o pai, Omar Salem, rigoroso até a medula no que tange ao cumprimento de regras não só comportamentais, mas também nesta seara da escrita e da fala) é apontada como um desleixo da casa editorial que publicou a obra. Ou seja, no sentido mesmo de uma revisão falha.

Aqui, dois pequenos cortes se fazem necessários. O primeiro, aponta para uma “incoerência” do próprio personagem Youssef, que diz ter inserido os erros ortográficos como uma provocação à rigidez do pai (sem a devida explicação ao leitor da motivação do recurso), revelando, assim, que inconscientemente espera que o genitor acesse a obra. No entanto, ele próprio luta, ou diz para si mesmo estar lutando no plano do consciente, para que o conteúdo não seja submetido ao escrutínio do chefe do clã.

O Goncourt

O segundo, para esclarecer que Youssef publicou o livro por uma pequena editora, após ter os originais recusados por casas como a Gallimard. Nesta caminhada em crescendo da repercussão da obra, o livro de Youssef acaba ganhando o Goncourt, o prêmio literário mais importante da França. A notícia, claro, chega até os pais do escritor, Omar (Abbes Zahmani) e Fatima (Tassadit Mandi). Os dois, lógico, se regozijam com o feito do filho, ainda desconhecendo o teor autobiográfico da obra.

Mentiras

Orgulhosos, os dois vão a Paris, para assistir à entrega da láurea ao rebento. E é aí que outras camadas do roteiro se fazem presentes. A primeira ainda se insere no escopo das mentiras empregadas para que Youssef se mantenha alinhado aos códigos da tradição familiar tão cara aos pais. É que ele se separou da mulher – na verdade, já há dois anos -, mas nunca contou aos genitores. Assim, o escritor visa evitar decepções diante do término de um laço considerado sagrado e indissolúvel (o casamento). Na verdade, a mãe, inclusive, ainda nutre a expectativa de se tornar avó por meio de Youssef.

Ah, sim. Ele também mentiu quanto à condição econômica em que se encontra e, não fosse já o suficiente, ainda anda abusando do álcool.

Cerimônia

Uma outra abordagem tangencial desponta numa cena aparentemente “sem importância”, mas que, sim, é bem reveladora da sociedade contemporânea ocidental. Ela se faz presente no momento em que uma recepcionista, que age como um ser autômato, tenta barrar o próprio Youssef da cerimônia do Goncourt. Ou seja, sendo ele o agraciado daquela edição do prêmio.

Ainda que Youssef, não sem uma certa (e justificada) dose de irritação, finalmente consiga adentrar a festa preparada em sua homenagem, a recepcionista logra êxito impedindo o acesso dos pais do escritor – mesmo se tratando de duas pessoas idosas, que racionalmente nunca estariam ali como penetras. A dizer: a cena é reveladora por apontar como certas tarefas, nos tempos atuais, têm sido executadas de modo robótico, destituído de raciocínio, do pensamento lógico – e, claro, do respeito. Ou seja, como se algumas funções fosse exercidas por seres automatizados, que, desse modo, não sabem como agir se algo, por menor que seja, escape ao que foi programado, às falas programadas.

Reality show

Paralelamente a tudo isso, ainda há um reality show, daqueles de sobrevivência na selva, no qual um árabe, Rachid (Lyes Salem), é eliminado. Aliás, uma das irmãs de Youssef lembra que, neste tipo de programa, os árabes são os primeiros a ser defenestrados. Ao fim, a vida de um dos participantes do programa se entrelaça à da família de Youssef de maneira curiosa.

Orgulho de ser árabe

Dá para dizer que o filme ainda aborda outras questões, como as peculiaridades de cada país árabe e dos povos muçulmanos. Isso porque os olhos ocidentais, mal acostumados que estão, costumam colocá-los no mesmo caldeirão. Há, também, a irmã Bouchra Salem (Melha Bedia), que tem orgulho de suas raízes e da cultura de seu povo. Assim, ela opta por não mudar o nome e, do mesmo modo, a usar o véu.

Ramzy e Tassadit

Em tempo: quem acompanha amiúde o cinema francês daqui, do Brasil, certamente lembra de Ramzy em “O Filho Uruguaio” (2017), exibido no Festival Varilux. Aliás, “O Livro da Discórdia” também foi exibido no mais recente Varilux. Ramzy também participou de um dos episódios da excelente série “Dix Pour Cent”. Precisamente, no episódio 1 da segunda temporada, quando ele surge como um dos contratados da agência, sendo, ali, casado com a atriz Virginie Efera.

Já Tassadit Mandi, atriz que interpreta a mãe de Youssef, é a adorável Hamida em “Fique Comigo”. Neste filme, ela faz personagem que acolhe um astronauta em casa, mesmo sem compreender uma palavra do que ele fala.

Serviço

“O Livro da Discórdia” (Youssef Salem a du succès)

Baya Kasmi / 2023 / 1h37 / Comédia / Livre

Cineart Ponteio, 17h45.

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