“Uma mulher”, novo livro de Annie Ernaux, mergulha em sua relação com a mãe

Lançamento da Fósforo, Uma mulher é mais um capítulo de um longo projeto da autora francesa, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura, que une o íntimo e o coletivo de maneira singular

Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

Uma mulher nasceu em um bairro rural de um vilarejo da Normandia em 1906. Originária de uma família de classe operária, o trabalho foi uma realidade desde cedo, a partir dos 12 anos. Tinha orgulho em ser operária, mas ambicionava mais, quem sabe, abrir um negócio próprio, uma mercearia e, assim, galgar mais alguns degraus numa longa escada social. “Uma lucidez revoltada acerca de sua posição inferior na sociedade a recusa em ser julgada apenas por isso”, nos diz Annie Ernaux sobre sua mãe. É ela a mulher na qual a escritora francesa mergulha neste novo livro publicado no Brasil, “Uma mulher”. Com tradução de Marília Garcia, o livro é uma publicação da Fósforo Editora.

O último vínculo

“Minha mãe morreu na segunda-feira 7 de abril na casa de repouso do hospital de Pontoise, para onde eu a tinha levado dois anos antes”. É assim que Ernaux abre a sua narrativa. A partir da morte materna, a autora retorna ao passado, do nascimento da mãe ao relacionamento das duas ao longo de décadas, e avança no tempo, mergulhando no luto e na ausência, na sequência de sua morte. “Perdi o último vínculo com o mundo do qual vim”. “Uma mulher” é um livro sobre a dor. É sobre o desafio de colocar em palavras essa dor. Como escrever a perda de uma mãe? Aqui, o processo de luto – e suas fases – se faz escrita. “Faz dois meses que comecei, ao escrever numa folha de papel, ‘minha mãe morreu numa segunda-feira 7 de abril’. É uma frase que agora consigo suportar e até mesmo ler sem experimentar uma emoção diferente da que sentiria se essa frase fosse de outra pessoa”. 

A figura materna

Este olhar para a figura materna é parte fundamental do projeto literário de Annie Ernaux. Um olhar para a mãe enquanto indivíduo e na relação com a filha, mas também em sua relação com o coletivo, com a própria classe social, com os papéis impostos ao feminino ao longo do século XX. Annie mergulha no íntimo para buscar compreender o social, num gesto singular que não deixa de surpreender pela capacidade reflexiva e analítica de todo um contexto político e cultural que não pode ser visto apartado do pessoal. “O que eu espero escrever de mais exato se situa, sem dúvida, na articulação entre o familiar e o social, o mito e a história. Meu projeto é de natureza literária, pois trata de buscar uma verdade sobre a minha mãe que só pode ser alcançada por meio das palavras”.

Conclusão

Annie Ernaux escreve neste novo livro uma de suas, acredito, mais bonitas e intensas afirmações sobre a própria escrita. Aqui, este ato se assemelha à gestação — mas de uma filha que gesta a mãe. “Agora tenho a sensação de que escrevo sobre a minha mãe para poder eu mesma trazê-la ao mundo”. Ao longo da breve leitura de “Uma mulher”, identificamos, numa frase ou parágrafo, toda uma constelação de livros e histórias que constituem o mapa sensível de quem é Annie Ernaux. Estão ali, por exemplo, o pai e a irmã primogênita falecida, que ela não conheceu — ambos temas de outras obras da autora. O  interesse de Annie Ernaux é tanto para o uno quanto para o múltiplo. É o particular e o coletivo, o íntimo e o compartilhado, embrenhados de maneira a se tornarem indivisíveis. Afinal, assim também é a vida. “Isto não é uma biografia, nem um romance, evidentemente, talvez alguma coisa entre a literatura, a sociologia e a história”.

Uma mulher (Fósforo)
Uma mulher (Fósforo)

Encontre “Uma mulher” aqui

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)

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