Aumento da taxa de juros trava crescimento e agrava crise climática

Sede do Banco Central (Bacen). Foto: Divulgação

Por J. Carlos de Assis*

Em razão da absurda decisão que o Banco Central tomou, ontem, de aumentar em 0,25 pontos percentuais a taxa Selic – não obstante a dramática necessidade que o País tem de estimular investimentos produtivos que venham a contrabalançar o aumento inevitável da demanda com a reposição de bens destruídos pelas enchentes, secas e queimadas, que podem atingir 62% do território nacional -, decidi antecipar a publicação do segundo de uma série de cinco artigos sobre a incompatibilidade da atual política fiscal-monetária brasileira em face dos desastres climáticos extremos. 

No primeiro artigo, foquei a política fiscal, um assunto resolvido em parte pelo ministro Flávio Dino, do STF, ao autorizar o Executivo a editar medidas provisórias liberando recursos oficiais fora do “arcabouço” e da “meta fiscal” a fim de combater esses desastres. Hoje, meu foco é principalmente a política monetária, intercalada com a  política fiscal, pois ambas devem ser coordenadas a fim de assegurar o desenvolvimento econômico sustentável, como acontece em qualquer país sério – exceto entre nós. Aqui o Banco Central é soberano, especialmente nos seus erros.

A justificativa do Bacen para aumentar a Selic, taxa básica de juros aplicada nas operações do mercado aberto – e que se estende, praticamente, a toda economia -, é combater a inflação ou mantê-la num nível baixo. Isso, junto com o fetiche de que o déficit público causa inflação, forma os pilares em que se estrutura a distorcida política fiscal-monetária brasileira.

Creio ter demonstrado, no primeiro artigo, que o déficit orçamentário primário não causa necessariamente inflação; pode, ao contrário, estimular o crescimento econômico e a estabilidade dos preços. Agora tentarei mostrar porque a política monetária conduzida pela atual diretoria do Bacen vem cometendo um crime contra o País, o qual será agravado em face dos desastres climáticos.  

Voltemos por um momento à questão fiscal. Segundo os neoliberais, não se pode fazer déficit no orçamento primário pois, do contrário, haverá inflação, independentemente das condições de oferta e procura no mercado real. Essa regra ignora que a inflação é geralmente um fenômeno de mercado, não de hipóteses subjetivas dos membros da diretoria do Bacen e dos financistas privados. Estes “inspiram” a Selic, através do Boletim Focus, com base, sobretudo, em “expectativas” em geral de viés altista,  sendo ela usada e ajustada diariamente no esquema de juros sobre juros no lugar do índice oficial mensal de inflação medido pelo IBGE.

Entretanto, quando se analisa a economia fora dos padrões ideológicos do neoliberalismo, não é preciso, para que o País cresça com sustentabilidade, que tenha equilíbrio fiscal, como mencionei antes. Na verdade, o que se  requer para assegurar a estabilidade inflacionária com crescimento  é justamente o oposto. Ou seja, que um desequilíbrio inicial do orçamento primário, resultante da expansão da demanda acima dos gastos e investimentos públicos, induza o aumento da produção de forma dinâmica, a fim de que o equilíbrio seja sempre restabelecido pelo aumento da produção (com eventual contribuição de importações) e não pelo corte da demanda. 

Resumindo: para fomentar o crescimento sem aumento do custo de vida e da inflação,  é essencial que haja déficit primário, porém com a contrapartida de bons projetos do próprio Governo ou da iniciativa privada para investimentos em infraestrutura e produção de bens e serviços de amplo consumo, estimulados pela maior liquidez e a queda de juros provocadas pelo próprio déficit. Como temos amplos recursos naturais, principalmente de energia, e suficientes reservas internacionais de mais de US$ 355 bilhões a fim de servir de garantia para  financiamentos externos de máquinas, equipamentos e insumos industriais necessários para a economia, estamos em condição de aumentar a produção como contrapartida do déficit, garantindo a estabilidade dos preços.   

Cabe ao Bacen criar as condições de mercado para garantir a expansão dos investimentos, ou seja, juros baixos, e ao Planejamento estabelecer os mecanismos públicos e privados (incentivos) de distribuição entre investimentos de infraestrutura, que criam oferta de longo prazo,  e investimentos para a produção de bens de consumo popular, que devem responder à demanda corrente e à nova demanda de curto prazo (salários, insumos, serviços)  que resulta dos próprios investimentos de infraestrutura. Diante dos desastres climáticos extremos e recorrentes, os investimentos públicos e privados para reconstrução e prevenção necessariamente vão aumentar. Ao elevar a Selic, o Bacen está cometendo um crime contra o Brasil e o povo brasileiro.    

Na economia como um todo, a sustentabilidade com crescimento implica que demanda e oferta no mercado real se equilibrem num ritmo aproximadamente igual, em geral puxado pela demanda. Isso pode resultar em alguma inflação, porém controlada. É que, se a oferta correr muito à frente da demanda, os empresários não terão incentivos de mercado para continuar investindo e criando empregos, e se acomodam na especulação do mercado financeiro com taxa de juros maior que seus lucros operacionais – sobretudo, no nosso caso, onde a  Selic inflacionária tornou-se indexador geral da economia. 

Entretanto, se a demanda se antecipar à oferta e a taxa de juros cair, aumentarão as oportunidades de investimento e de empregos no setor privado, favorecendo a “desfinanceirização” da economia, pois os empresários preferirão investimentos produtivos com rentabilidade superior à troca da papelada produtivamente inútil do mercado financeiro. É óbvio que, no curto período de tempo em que a oferta busca atender à demanda, pode haver um resíduo inflacionário nos mercados reais de bens e serviços. Mas durará só enquanto a produção, com eventual contribuição de importações – se o país tem recursos para isso, e o Brasil tem – não se ajustar à demanda. Isso determinará um ciclo dinâmico de crescimento com estabilidade monetária. 

O fato é que o equilíbrio do orçamento primário “congela” o conjunto da economia mantendo seu crescimento em níveis baixos, e a alta dos juros tem o mesmo efeito. O aumento do PIB é função direta do aumento da produção e da oferta, e se não houver estímulos para produzir com vistas ao mercado interno ou externo, não há como esperar desenvolvimento sustentável. Entretanto, as condições para investimentos novos na economia dependem do aumento dos gastos públicos e da situação do mercado financeiro. No Brasil, onde prevalecem taxas de juros exorbitantes para aplicações financeiras diárias no mercado aberto, como as “operações compromissadas” do Bacen (moeda remunerada),  a Sociedade está pagando para que um grupo reduzido de gananciosos especuladores internos e externos suguem o sangue de uma economia que beira a estagnação e a regressão.

Enquanto isso, impulsionado pela Selic, explode o orçamento financeiro, onde se encontra o colchão de segurança para esse tipo de especulação. Em 2.020, a Dívida Pública Bruta brasileira aumentou de forma justificada para o pico de  96,0% do PIB, especialmente por causa dos custos da pandemia da covid. Voltou para patamares mais baixos em 2.021 e 2.022, e atinge, agora, nos dois primeiros anos do governo Lula cerca de R$ 7 trilhões a R$ 7,4 trilhões. Entretanto, não é o valor absoluto da dívida o que interessa. O importante é o serviço que o País paga por  ela. No próximo ano, esse custo será da ordem de R$ 1 trilhão, incluindo correção monetária, cambial e juros.

Esse valor corresponde a quase metade do orçamento primário da União, fixado pelo Congresso entre 2.024 e o previsto para 2.025  em R$ 2,222 trilhões. Compare-se esse número com os  recursos previstos pelo Governo federal para aplicação no programa de Gestão de Riscos da Defesa Civil em todo o País, acumulados ao longo de 13 anos, de 2.012 e 2023, e informados pelo TCU: foram míseros R$ R$ 38,441 bilhões, incluindo correção monetária. Além disso, o Poder Executivo deixou de aplicar 35,5% deles.

Isso se replica nos estados, todos submetidos à Lei de Responsabilidade Fiscal. No Rio Grande do Sul, tradicionalmente exposto a grandes desastres climáticos – e que, agora, ainda sofre as consequências do maior deles  com  a tragédia sem precedentes históricos que aconteceu em meados deste ano -, o Governo estadual destinou insignificantes R$ 7,6 milhões de seu orçamento de 2.025 para a Defesa Civil, segundo sua Lei  de Diretrizes Orçamentárias.

É um insulto contra o povo gaúcho. Dado que, desde 2.015, a ONU  e vários cientistas brasileiros, fora os negacionistas, vêm apontando a necessidade de medidas de prevenção, é impossível atribuir os desastres apenas à Natureza. No que diz respeito à prevenção, sua causa é essencialmente política. 

Entretanto, como apontei no início dessa série, a institucionalidade fiscal- monetária brasileira é incompatível com a Era de desastres climáticos frequentes e extremos, com cada vez maiores prejuízos humanos e materiais, e cuja ocorrência poderá ser prevista com segurança para os próximos anos e provavelmente décadas.

Para o povo, no que diz respeito à ação do governo em sua proteção, o que importa é escapar do esmagamento do orçamento primário pelo orçamento financeiro, que lhe tira  margem de recursos para aplicação nas funções básicas do Estado em seu benefício, inclusive em reconstrução e prevenção de desastres climáticos extremos.  

A desestruturação do nosso sistema financeiro, resultante em parte da interferência na nossa economia do FMI para nos forçar a negociar a Dívida Externa em condições subalternas, teve também o concurso de economistas neoliberais internos, que replicaram na nossa institucionalidade as receitas acadêmicas do Consenso de Washington, como foi o caso do círculo de economistas neoliberais que cercou Fernando Henrique Cardoso em sua presidência de 1.995 a 2.013, quando editou, em 2.000, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso teve consequências desastrosas também no desmonte do sistema federativo do país, como se verá. 

É preciso relativizar, contudo, o papel do Fundo nesse processo, e dar destaque maior ao que se chamou de Consenso de Washington. Este, ao contrário do Fundo, que se ocupa principalmente de cuidar dos interesses dos grandes bancos norte-americanos e  internacionais na negociação de dívidas externas de países pobres e emergentes, chamou a si a tarefa informal de “aconselhar” o Brasil em política interna, através da mídia e de outros instrumentos de comunicação, como seminários e palestras, com o objetivo de controlar a inflação e pagar a  dívida externa com extremas restrições fiscais. 

Síntese ideológica do neoliberalismo, sua recomendação básica é um conjunto de  medidas de controle monetário e fiscal, de liberação cambial e de privatização do patrimônio estatal – o “chamado tripé macroeconômico”-, a fim de forçar o governo a realizar equilíbrio orçamentário para garantir à economia uma suposta estabilidade externa e interna. Sua aplicação teve duas consequências no sistema federativo.

O sistema bancário público estadual foi privatizado; e o sistema tributário estadual foi virtualmente “roubado” em seu principal imposto, o ICMS, mediante sua transferência para o controle do Governo federal. Nos dois casos, as medidas visavam em último caso à realização de superávits primários no orçamento da União.

Havia, na época, por parte do “mercado” privado, da mídia e da elite da tecnocracia pública, grande preconceito contra os bancos estaduais oficiais, o que facilitou essas manobras. Ignorava-se que desempenhavam papel importante no sistema financeiro brasileiro, porque desconcentravam recursos bancários na economia. Dizia-se que eram fonte de corrupção e de má gerência. Assim, eles foram eleitos para a política recomendada pelo Consenso de Washington, por meio da privatização de quase todos, forçada pelo Governo de FHC. Com isso esperava-se que o sistema bancário estadual não contribuísse para a expansão monetária, e, ao contrário, favorecesse sua redução e a geração de equilíbrio ou mesmo superávits primários. 

Como os bancos estaduais rolavam no over grande parte de sua dívida à vista, o Governo federal obrigou a que fossem absorvidos pelo sistema bancário privado, mediante financiamento de seus passivos, indiretamente assumidos por ele em nome dos estados. Por fim, a dívida correspondente foi transferida de volta aos próprios estados, para pagamento a longo prazo. Um passivo que era rolado à vista foi transformado numa dívida contratual a prazo, a altos juros intra governos. O efeito disso perdura até hoje, na forma de uma imensa dívida dos estados junto à União, e de uma tremenda concentração bancária no País. O Senado acaba de aprovar um projeto de seu pagamento pelos estados no montante de R$ 700 bilhões, um valor absurdo.

Outra medida do Governo Fernando Henrique contra os estados foi a Lei Kandir, de sequestro pela União de seu principal imposto, o ICMS, aplicado sobre  exportações de produtos primários e semielaborados, havendo o  compromisso de  devolução posterior dos recursos correspondentes pela União. Não foram devolvidos em sua maior parte. Assim, somando-se a dívida oriunda da privatização dos bancos estaduais com os recursos do ICMS não devolvidos,  os estados, que eram estigmatizados como devedores do Governo federal, na realidade, por volta de 2.020, eram credores dele, só nessas duas contas, em mais de cerca de R$ 1,3 trilhão em valores corrigidos.

No caso específico da Lei Kandir, o pretexto da manobra era estimular a exportação para criar reservas em dólar, a fim de se pagar a dívida externa, ficando o custo com o Governo federal e, inicialmente, com os estados. Entretanto, em sua esmagadora maioria, as perdas correspondentes dos estados não foram ressarcidas.  Estas, não pagas,  foram calculadas para o período de 1996 a 2017 em cerca de R$ 700 bilhões. Então, o governo Bolsonaro impôs aos Estados um acordo draconiano, com desconto absurdo, mediante o qual irão receber da União cerca de apenas 10% daquilo a que teriam direito – R$ 70 bilhões de R$ 700 bilhões -, assim mesmo em 17 parcelas. O STF, inacreditavelmente, participou desse acordo infame!

Por outro lado, outras dívidas dos estados junto à União foram consolidadas e refinanciadas em R$ 112 bilhões em  valores nominais,  passando a ser cobradas com juros compostos (juros sobre juros) altíssimos: 6% a 7,5% ao ano, mais a inflação medida pelo IGP-DI. Como resultado, de 1997 a 2019, o conjunto dos estados pagou à União R$ 357 bilhões de juros e amortizações. Mesmo assim, a dívida subiu para R$ 559 bilhões. Ou seja, foi paga 3 vezes e seu estoque se multiplicou por 5! A União utiliza tais recursos para pagar a também questionável dívida pública federal. 

Esse mecanismo foi denunciado pela Auditoria Cidadã da Dívida durante a CPI da Dívida na Câmara dos Deputados em 2009/2010. Houve várias sugestões para mudar essa situação. Pressionado, o Poder Executivo apresentou à Câmara dos Deputados, em 2013, o Projeto de Lei Complementar 238/2013, no sentido de recalcular o estoque da dívida desde seu início pela Taxa Selic (sempre ela) e, a partir dali, mudar seu indexador para o IPCA mais juros de 4% ao ano. Esse projeto demorou quase dois anos para ser transformado na Lei Complementar 148, em 2014. Porém, a AGU interpretou que essa lei era apenas “autorizativa” e não obrigaria o Poder Executivo a implementá-la. Isso foi finalmente corrigido em 2015, com a Lei Complementar 151.

Em lugar de ajudar os estados em suas agruras financeiras, o Governo federal, que como agente de um país supostamente soberano não tem limites de emissão monetária e de títulos públicos – desde, como disse, se destinada a investimentos em  projetos responsáveis, com retornos garantidos -, lhes impõe condições financeiras reais impagáveis mediante o refinanciamento de dívidas duvidosas e, pior, sem qualquer possibilidade de que agora ou no futuro consigam o equilíbrio financeiro, mediante o chamado Regime de Recuperação Fiscal, já aceito por alguns estados. 

Na lista de imposições desse Regime encontram-se, como denuncia o técnico do IBGE, Paulo Lindsey: privatização de empresas públicas e estatais; reforma previdenciária nos moldes federais (teto do INSS e fundo complementar de natureza privada e contribuição definida, com cobrança extraordinária para supostamente manter seu equilíbrio); revisão do Regime Jurídico Único para os funcionários; redução de alguns incentivos; teto para gastos primários (exceto para pagamento da própria dívida).

A isso se acrescentam várias restrições na área dos serviços públicos, proibindo ou limitando contratação de funcionários, efetivação de investimentos e realizações de operações de crédito, entre outras. Na prática, a autonomia estadual está destruída, assim como o regime federativo. O próprio nome da operação é uma hipocrisia: não há real regime de recuperação fiscal alguma, mas simples arrocho fiscal e adiamento de obrigações financeiras que são refinanciadas e postergadas pelo Governo federal para o fim de estabelecer contratos de nove anos de prazo, quando as parcelas acordadas terão de ser pagas com correção monetária e juros.

Em conclusão, pode-se antecipar que a situação que os estados submetidos a regimes de recuperação fiscal,  como o próprio RS, estão vivenciando, será extremamente agravada na hipótese de outros grandes desastres climáticos, e trará impactos consideráveis no orçamento primário da União. No caso gaúcho, a ajuda custará cerca de R$ 77 bilhões,  considerando custos inicialmente  anunciados de  R$ 23 bilhões –  sendo R$ 11 bilhões que deixariam de ser pagos à União e outros R$ 12 bilhões em juros sobre a dívida global do Estado de mais de R$ 100 bilhões. E tudo isso representando uma relação absolutamente injusta entre estados e União, pois União não é banco, e entes federados não deviam cobrar juros entre si!

Queimadas na Amazônia. Foto: Agência Brasil

Considerem-se, agora, outros desastres climáticos extremos que se replicam  em vários outros estados brasileiros, de proporções próximas às do Sul, especialmente na forma de secas prolongadas e imensas queimadas criminosas, desafiando o Governo federal a prestar a todos eles, na proporção dos prejuízos humanos e materiais sofridos, o mesmo tipo de assistência que deu aos gaúchos: quais serão as consequências fiscais e monetárias disso?  Se mantivermos nossa institucionalidade nesse terreno, quem socorrerá o Brasil para pagar a conta total do déficit federal e garantir-lhe desenvolvimento sustentável? Pode-se imaginar que o Banco Mundial, o BID, o Banco BRICS o façam? Entretanto, com isso, estaremos perdendo nossa Soberania e passaremos o resto da vida pagando juros! 

O País tem que se adiantar a essa situação desastrosa e mudar radicalmente sua institucionalidade fiscal-monetária. Temos de passar de nossa situação atual, de economia da especulação, para economia da produção. O desafio maior é a Dívida Pública Bruta que, incluindo a carteira do Bacen, deverá atingir  os R$ 9,504 trilhões neste ano, com o custo anual do serviço beirando R$ 1 trilhão. Chegamos a esse ponto em razão de várias distorções política fiscal-monetária que tem que ser profundamente alterada. E será necessário ter coragem par fazer a reforma financeira, pois haverá uma brutal resistência das oligarquias bancárias, do agronegócio e industrial, assim como dos níveis privilegiados da própria tecnocracia pública, que se beneficiam de privilégios materiais garantidos pelo  Estado e dentro do Estado. 

Como o orçamento financeiro está crescendo anualmente ao ritmo de 10,4%, previsto pela LOA para 2.025, chegará o momento em que, uma vez esmagado o orçamento primário, o Estado perderá suas principais funções públicas nas áreas de interesse social como Previdência, Saúde, Educação, Saneamento Básico e, naturalmente, de enfrentamento das mudanças climáticas. Diante disso, além de contornar as restrições fiscais do “arcabouço”, conforme autorizado pelo ministro Flávio Dino, serão necessárias medidas mais abrangentes, que levem ao crescimento do PIB.  A mais importante delas é estimular o investimento produtivo e a oferta mediante a redução da taxa de juros,  para acompanhar a alta da demanda – na direção contrária ao que tem sido praticado pelo Bacen, absolutamente indiferente à situação atual do País.  

Uma das principais distorções da economia brasileira, que nos expõe a essa situação duplamente catastrófica – a climática e a financeira – é a forma como o Bacen, do lado financeiro, opera o mercado aberto. Não há nenhum sentido em mantermos o sistema de moeda remunerada que se expressa nas operações compromissadas, sobretudo com correção monetária diária pela Selic – uma taxa básica subjetiva de viés inflacionário, como disse antes. A Selic, que é hoje a mais alta taxa básica de juros do mundo, e se encontra em torno ao de 8% ao ano em termos reais, representa a maior trava de investimentos que temos no País. 

A Base Monetária controlada pelo Bacen nada custa ao Tesouro, como se sabe. Já as operações compromissadas entre o Banco e o setor privado, considerando que, em média, sigam o mesmo ritmo anteriormente observado até dezembro próximo, alcançará o total R$ 846 bilhões só para juros da moeda remunerada. Isso é um custo extravagante para a autoridade monetária e para a  economia, que não existiria caso não houvesse a moeda remunerada.  

Outra forma de verificar essa distorção, expressa na extrema financeirização da economia brasileira, é comparar a Base Monetária com o valor do  PIB. A Base varia em torno de R$ 437 bilhões (junho último), com aumento de 8,4% em 12 meses. Já o PIB de 2.023 foi calculado em R$ 11,679 trilhões. Comparando-se os dois números, vê-se que a Base Monetária sem custos para a autoridade monetária é pouco mais de 37% do PIB, muito abaixo comparado ao que acontece em outra economias, onde chega até  60% do PIB.   

Esse sistema é responsável por um processo brutal de transferência de renda de pobres para milionários, na economia, só em operações compromissadas do Bacen. Ele tem que ser desmontado em nome dos interesses do País e dos cidadãos comuns. Atende apenas aos interesses dos ricos, servindo muito pouco à economia produtiva. E não vejo outra forma de fazê-lo a não ser pelo congelamento temporário dos recursos que giram no mercado aberto na forma de operações compromissadas, lançando, em contrapartida, títulos precatórios de médio e longo prazos para pagá-los, de forma a acabar definitivamente com a moeda remunerada na economia brasileira. Nesse caso, o Tesouro se limitaria a emitir títulos a prazo exclusivamente para financiar os precatórios sugeridos, a carteira do Bacen para operacionalizar um mercado aberto decente e os investimentos reais na economia. 

Isso depende, quanto ao congelamento temporário do mercado aberto, fundamentalmente, da pressão institucional que o Governo venha a exercer sobre as oligarquias financeiras credoras e seus asseclas na mídia e na própria estrutura estatal para que aceitem, inicialmente na forma de negociações voluntárias, a troca de seus créditos financeiros no over pelos precatórios, com as devidas  garantias de pagamento, prazo e taxa de juros. Se recusarem a negociação, o Governo deve exercer seu poder soberano para impor ao mercado o esquema de troca dos recursos que giram no over por títulos a prazo garantidos pelo  Tesouro Nacional.

Outra distorção a ser enfrentada, esta introduzida já na elaboração da  Constituição de 1.988, é a ausência de um limite para a tomada de créditos externos em dinheiro, a que me referi anteriormente. Isso surgiu de uma iniciativa fraudulenta de um então jovem parlamentar, Nélson Jobim – mais tarde ministro de FHC e do STF -, que introduziu na Carta, sem passar por análise prévia de qualquer comissão, a alínea b do inciso 2º, parágrafo 3º do Artigo 166, que liberou de controles a tomada de créditos externos. Com isso, investidores estrangeiros passaram a ter fácil acesso ao nosso sistema financeiro para manobras especulativas com o dólares e outras moedas estrangeiras, algo que só pode  ser revisto por um emenda constitucional.

Para compatibilizar o estabelecimento de tetos anuais de tomada de crédito externo com medidas prudenciais internas para controle da Dívida Pública Externa, basta limitá-los aos investimentos produtivos a que se destinem, evitando-se, portanto que sejam desviados para a especulação financeira. Espera-se que esses investimentos, quando privados, produzam os resultados que irão pagá-los no futuro, evitando a sobrecarga do serviço da dívida privada no orçamento público, na medida em que esteja separado das contas patrimoniais do Bacen. 

Igualmente importante é rever, justamente, essa relação entre Banco Central e Tesouro. São órgãos do Estado que têm necessariamente de atuar de forma coordenada. Na nossa institucionalidade, o Bacen atua isoladamente, manipulando a taxa de juros e tomando outras iniciativas a seu bel prazer. Na Conta Única que divide com o Tesouro, o saldo positivo do resultado do Bacen é transferido ao Tesouro, que só pode aplicá-lo na Dívida Pública externa. Entretanto, quando o saldo é negativo, o Bacen o repassa ao Tesouro de forma que ele o pague com recursos do orçamento primário ou em títulos federais, reduzindo ainda mais as margens deste para aplicações em funções de interesse público.

As pressões sobre os orçamentos públicos brasileiros, incluindo os custos financeiros dos desastres climáticos que têm ocorrido em todo o território nacional, terão de ser absorvidas, bem ou mal, em parte pelo Tesouro central, já que estados e municípios estão virtualmente falidos, e em parte pelo próprio setor privado, nesse caso na medida do próprio crescimento do PIB. Fica patente, assim, que, se  não houver uma reforma profunda em nossa economia, para estimular o crescimento, vamos afundar todos numa grande bancarrota sem precedentes, independentemente do ajuste formal do orçamento por cortes sucessivos no primário possibilitados por medidas legais extraorçamentárias.

É que a estabilidade inflacionária não depende do orçamento público, mas da relação entre oferta e demanda no mercado real – como tenho insistido. Só há estabilidade permanente no mercado com crescimento do PIB se essa relação refletir um aumento dinâmico da demanda e da oferta. Em face de desastres climáticos, inicialmente a demanda tende a crescer à frente da oferta, pois é influenciada pela reposição de bens domésticos  e de reconstrução da infraestrutura. Diante disso, como já observado, os empresários tenderão a continuar investindo – como, aliás, vem acontecendo no Rio Grande do Sul.

Haverá um momento, porém, na medida do aumento da frequência dos desastres extremos, em que a demanda não se sustentará: poderá faltar crédito para empresas e famílias por causa de seu alto custo ou pelo elevado grau de endividamento a que tenham sido levadas justamente por causa de desastres anteriores. Nesse caso, desaparecerá o estímulo ao investimento privado e estaremos no pior dos mundos, desaparecendo nossas perspectivas de desenvolvimento sustentável.

Talvez tudo isso, a questão fiscal e a questão climática, tenha um efeito político positivo. De fato, o extremo risco em que vivemos pode nos levar a um grande Pacto Social e Político supraideológico e suprapartidário, proposto pelo presidente Lula, pois, do contrário, estando todos  num mesmo barco, pobres e ricos, seremos todos condenados a afundar juntos. Contra isso, o mais lógico e coerente seria que os diferentes segmentos sociais chegassem a um acordo pragmático de interesse geral para redefinir nossa institucionalidade fiscal-financeira, assim como para estabelecer um programa comum, envolvendo todos os entes públicos e a Sociedade Civil, para a adaptação do País aos desastres climáticos. Contudo, quem pode dizer que a política segue a lógica e a coerência, mesmo que os riscos futuros exijam essa atitude?

*J. Carlos de Assis é jornalista, economista, doutor em Engenharia de Produção, professor de Economia Política aposentado da UEPb. 

Este texto é o segundo de uma série de cinco que estão sendo publicados sobre política fiscal, política monetária, prevenção de desastres climáticos, neoliberalismo e progressistas, e a construção de uma nova sociedade a partir dos APLs.

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