Lançado pelo Círculo de Poemas, “A tradição” é um volume assombroso de poesia: “Minha memória é um ruído necessário”
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
“Sim, posso estar em risco,
Mas, juro, confio mais nas larvas
Que moram debaixo das tábuas do piso
Da minha casa para fazer o que é preciso
Com uma carcaça qualquer do que/ Num agente da lei nesse país”
Antes de mais nada, os versos acima, do poema “Pontos importantes”, parecem sintetizar parte do grande tema que orbita “A tradição”, primeiro livro do poeta norte-americano Jericho Brown publicado no Brasil. Jericho diz, num conjunto assombroso de textos, sobre a experiência negra contemporânea no seu país de origem – mas com diferentes pontos de contato com a experiência brasileira e de tantos outros países – em suas mais diversas possibilidades. A incessante e sucessiva violência policial é uma delas. Mas não a única. “A tradição” publicado pelo Circulo de Poemas com tradução de Stephanie Borges.
No mesmo poema que abre este texto, Jericho Brown nos diz:
“Mais valioso que o acordo
Que uma cidade pode pagar para uma mãe chorar,
E mais belo que a bala novinha em folha
Pescada das camadas do meu cérebro”.
“A tradição” é um livro duro, sobretudo quando invadido pelo real dessa maneira. São muitos acordos, são muitos os choros de mães e são incontáveis as balas disparadas contra corpos negros dia após dia pelo fato unico e exclusivo de serem corpos negros. O real também invade o poema “Charada” mas, nesse caso, ganha um rosto e nome próprio:
“Nós não reconhecemos o corpo
De Emmett Till. Nós não sabemos
O nome do garoto nem como é o som
Da mãe dele aos prantos”.
Emmett foi um garoto negro assassinado brutalmente aos 14 anos de idade numa pequena cidade do Mississipi, depois de ter sido acusado de ofender uma mulher branca, Carolyn Bryant. Se o jovem foi morto em 1955, Carolyn Bryant veio a falecer apenas em 2023, aos 88 anos, sem nunca ter sido responsabilizada por seu papel na morte de Emmett Till.
Ao olhar para o passado no poema “Os pêssegos”, Brown revela:
“Por eles, faço um breve percurso
Até minha infância, essa casa
De trincos, labirintos
E portas
Trancadas.
Todas as chaves
São minhas agora, embora tenha escondido algumas
De mim”.
Quantas memórias recalcamos, como forma de proteção, como única possibilidade de seguirmos em frente? “Me interesso mais por pessoas que se dizem gratas/ Pelas surras na infância. nenhuma delas levou uma da minha mãe”, o poeta nos diz em “Herói”. Em Jericho Brown, o amor é política, é um gesto combativo:
“Tenho certeza
Que alguém morreu enquanto
Fazíamos amor. Alguém
Matou uma pessoa
Negra. Pensei então
Em abraçar você
Como gesto político”.
Em síntese o amor, os traumas familiares, as dores ancestrais, carregadas geração após geração, o prazer, o corpo negro. São muitos os temas presentes nos versos do volume. Pelas mãos de Jericho Brown, cada poema parece carregar um universo próprio. Ainda assim são textos para ler e reler. E o que mais fascina é o fato de que o assombro permanece na releitura. Entretanto, a cada retorno parecemos descobrir uma peça nova na engenhosa escrita do norte-americano. Não à toa, o livro venceu o Pulitzer em 2020. “Minha memória é um ruído necessário” conclui o escritor. Por fim, sim, Jericho, as páginas de “A tradição” ecoam um ruído urgentemente necessário, em alto e bom som.

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)
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