O documentário hidrófobo da Brasil Paralelo sobre as universidades. Por Luis F. Miguel

Imagem de divulgação do stream da Brasil Paralelo. Foto: reprodução

Assisti ao primeiro episódio do pretenso documentário da Brasil Paralelo sobre as universidades brasileiras. Não vi o outro, que exige pagamento, mas acho que já basta para ter uma noção clara daquilo que eles se propuseram a fazer.

É uma mixórdia de acusações contra as universidades, sem qualquer seriedade, no tom cafona que tenta passar a ideia de que houve um grande trabalho investigativo e estão sendo feitas grandes revelações.

Mas na verdade é uma costura de velhas reclamações, que vão do consumo de tóxicos nos campi ao pretenso predomínio de teses de esquerda, dos escândalos deliberadamente promovidos por um punhado de militantes identitários à imputada simpatia pelo terrorismo de estudantes contrários ao genocídio do povo palestino.

Não existe, obviamente, nenhuma tentativa de fazer um diagnóstico abrangente da situação das universidades ou um balanço daquilo que elas oferecem ao Brasil.

A Brasil Paralelo entrevista alguns “especialistas”. Entre os brasileiros, são três ou quatro estudantes vinculados à extrema-direita, dois ou três professores sem qualquer expressão, um diplomata da linha de Ernesto Araújo e, claro, jornalistas da Gazeta do Povo – o pasquim paranaense que mantinha uma editoria especializada em lançar calúnias contra profissionais da educação.

Aliás, como de costume nesse tipo de material, o “documentário” é todo pontuado por imagens de manchetes de jornal, todas elas apontando escândalos na universidade. A maior parte é de reproduções da própria Gazeta do Povo – ou, então, de veículos da mesma laia.

O nível é tão baixo que um “intelectual” vai explicar porque a universidade perde o rumo caso se dedique a perseguir uma utopia (o título do documentário é “Unitopia”, de tão marcante que eles acharam que foi essa fala). Ele disse: utopia significa “não lugar”, logo a universidade não pode ser isso, porque a universidade ocupa um lugar na sociedade.

É tão demente, demonstra tanta incapacidade de entender o significado de utopia, que não dá nem para comentar.

Os convidados estrangeiros não são melhores; um punhado de direitistas hidrófobos, irrelevantes em todos os sentidos. Um deles, por exemplo, vai sintetizar o pensamento de Marx. Depois de simplesmente ignorar toda a teoria econômica de Marx dizendo que são “besteiras”, apresenta o marxismo como uma espécie de teoria da conspiração, por afirmar que a sociedade é organizada para manter a dominação de uma minoria e que as estruturas do Estado possuem viés de classe.

Filipe Valerim, Lucas Ferrugem e Henrique Viana, fundadores da Brasil Paralelo. Foto: reprodução

É nesse nível. Primário. Além disso, a produção é mequetrefe, a locução é horrível, é tudo de péssima qualidade.

Mas, a acreditar nos comentários, o público do Brasil Paralelo aplaude, delira. O documentário comprovando o que acontece quando falta Deus no coração das pessoas! Reconhecem, todos eles que não passaram no vestibular, que é melhor mesmo não estudar numa universidade pública.

Aliás, essa é talvez a mensagem mais forte da primeira parte do documentário: a ideia de que é melhor não estudar, é melhor “ficar olhando para uma parede em branco”, como diz um entrevistado, já que estudar significa ser contaminado por ideias nocivas.

É preciso reconhecer que a produção da Brasil Paralelo mente pouco, no sentido de inventar fatos. O que eles fazem é generalizar a partir de exceções e ignorar tudo, o grande tudo que não corresponde à narrativa que querem emplacar.

Eles mentem, mesmo, é ao fazer propaganda de si mesmos. O locutor não cansa de afirmar como a Brasil Paralelo é uma empresa apartidária, imparcial e que se sustenta com as assinaturas de seus espectadores. Nada disso é verdade, todos nós sabemos. Ela é uma máquina de doutrinação ideológica neofascista que é bancada pelo dinheiro grosso do capital.

Mas, no geral, o que impera são as meias verdades e os recortes malandros. Um exemplo: eles dizem que contactaram 125 professores, mas 112 não responderam, seis disseram que não iam dar entrevista por “medo de perseguição” e um aceitou falar de forma anônima (e aí vêm trechos com uma voz alterada, na tela apenas a sombra de uma pessoa, falando várias barbaridades).

A impressão que fica é que ninguém quis falar porque tinha medo de retaliação dos “esquerdistas” das universidades. Mas eu fui um dos professores contactados pela produção e nem respondi o e-mail. Conheço outros casos assim. Não respondemos porque não queríamos alimentar a farsa da imparcialidade, sabendo que qualquer entrevista que déssemos seria manipulada pela produção.

Salvo engano, sou o único professor da ativa citado pelo nome nessa primeira metade do programa. É uma referência ao curso sobre o golpe de 2016, que lancei na Universidade de Brasília e que, depois que o então ministro da Educação tentou proibir, foi replicado em muitas outras instituições do país e até do exterior.

O caso serve para um dos entrevistados dizer que as universidades não respeitam a história e tratam o “legítimo impeachment” de Dilma como um golpe. Assim. Como uma verdade absoluta, ignorando toda a discussão que ocorreu, entre pesquisadores da Ciência Política, da História, do Direito, discussão essa que levou ao reconhecimento, amplamente majoritário, de que o golpe foi golpe.

Mas a estratégia deles é essa: eles se apoiam em argumentos de autoridade e o fato de que essa “autoridade” não é aceita no campo acadêmico e científico não é levada em conta, porque o que está sendo impugnado é exatamente esse campo.

Trata-se de uma forma bem rasa de negacionismo, que se apresenta como se fosse uma elaboração sofisticada.

Mas tem seu público. Não vamos minimizar o efeito que esse discurso tem obtido. Do nosso lado, temos que combatê-lo, de todas as formas que estiverem ao nosso alcance.

Uma dessas formas é ampliar o esforço de divulgação científica, aumentando na sociedade o potencial de compreensão daquilo que fazemos no ambiente universitário.

Outra forma é não transigir com a qualidade do nosso trabalho, não aceitar o avacalhamento dos critérios de validação do trabalho intelectual e científico – mesmo que isso exija o enfrentamento de grupos que se apresentam à esquerda e como nossos aliados.

Não é por acaso que a produção da Brasil Paralelo começa com o affair Sokal. Mais adiante, um dos entrevistados gringos se diverte falando das absurdidades que emplacou em revistas acadêmicas pós-modernas. Para o espectador, fica a ideia de que seriam as publicações mais prestigiosas na academia Anglo e indique tudo que se produz é isso.

Não, não é. Nem de longe. Mas que imbecilidades desse teor encontrem um nicho no mundo acadêmico, isso é um problema que precisamos reconhecer como grave e que precisa ser combatido.

Até mesmo para proteger o trabalho sério, que produz conhecimento, que tem potencial de contribuir para o desenvolvimento da sociedade e para a emancipação humana, que é aquilo que a universidade de fato produz – e o que de fato incomoda os direitistas hidrófobos da Brasil Paralelo.

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