Sakamoto: Ágatha, 8, avisa a Ryan, 4, que morte de criança negra e pobre fica impune

Túmulo de Ryan, 4 anos, morreu com um tiro de fuzil na barriga durante uma ação policial em Santos (SP)
Imagem: Samira Bueno/FBSP

Na mesma semana em que Ryan, 4, foi morto durante uma operação policial em uma comunidade pobre de Santos (SP), com um tiro de fuzil na barriga enquanto brincava com os amigos, um júri popular absolveu o policial militar Rodrigo Soares, autor do tiro de fuzil nas costas que matou Ágatha Félix, de 8 anos, durante ação policial no Complexo do Alemão, comunidade pobre do Rio, quando ela voltava para casa com a mãe.

Os sete jurados consideraram que o PM não teve intenção de matar. Policiais disseram que foram atacados, mas testemunhas e evidências contestaram isso. Soares teria confundido uma esquadria de alumínio carregada na garupa de uma moto com uma arma e disparou. O Ministério Público e a família vão recorrer.

Se Ágatha e Ryan ainda existissem, certamente a primeira diria ao segundo para não se decepcionar, pois a Justiça não chega para todos. Pois não é demagogia, mas conhecimento básico da realidade brasileira, a afirmação de que o maior crime neste país é nascer no local e na classe social “errados”. E com a cor errada – ambos eram negros.

Você se lembra do rosto de Ágatha Félix, morta em 20 de setembro de 2019? E do rosto de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, que morreu durante uma operação conjunta das polícias Federal e Civil em São Gonçalo (RJ)? E o de Marcos Vinícius da Silva, também de 14, assassinado, ainda de uniforme escolar, durante uma ação policial no Complexo da Maré?

Como construir um futuro se a maioria de nós já nem se lembra dos cadáveres de crianças negras pobres mortas durante ações da polícia que nos chocaram recentemente?

Como um país quer ser decente se há pessoas que comemoram ações da polícia que matam jovens e negros nas periferias, e depois se enrolam em bandeiras do Brasil para protestar por democracia?

A garota Agatha Felix e Ryan, 4 anos, mortos pela violência policial no RJ e em SP. Fotomontagem

Sim, quando circulam histórias de pessoas pobres agredidas ou mortas por seguranças privados ou um policiais no Brasil, uma parte de meus compatriotas diz prontamente “se morreu, é porque alguma coisa tinha feito de errado”.

Diante do caso de Ryan, o governo diz que “as mortes em decorrência de intervenção policial são resultado da reação de suspeitos à ação da polícia”. Ou seja, se morreram é porque são culpados, o que dá ao cano da arma do agente de segurança o poder de investigador, promotor, juiz e carrasco. Mas, como já disse aqui, que culpa tem Ryan além de ter nascido em um estado onde o poder público está despreparado para lidar com vidas?

Sim, para muita gente, era Ryan, Ágatha, João Pedro e Marcos Vinícius que estavam no “lugar errado e na hora errada”.

É claro que não há ordens diretas para metralhar crianças pobres dadas pelo comando do poder público ou por empresas privadas. Mas nem precisaria. Primeiro, ensinamos agentes de segurança em grandes metrópoles a odiar para garantir que tudo se mantenha como está. Segundo: ao implementar uma política de alta letalidade policial, estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia assumem o risco da morte dessas crianças como “efeito colateral”. Por isso, seus comandos políticos deveriam ser responsabilizados nos tribunais. Deveriam, mas não serão.

Como já disse aqui, o Brasil é um capataz que espanca e mata pobres e negros em estabelecimentos comerciais, mas também nas delegacias e periferias, com a certeza que isso continuará sendo permitido, pois é tarefa para a manutenção do cotidiano dos “homens e mulheres de bem”.

Uma maioria de policiais honestos sofre com isso, pois também morre, mas acaba engolida pelos desonestos, os violentos e os oportunistas.

E enquanto crianças morrem em comunidades pobres durante operações policiais, facções criminosas se espalham gostosamente pelo país, controlando a política, a polícia e aterrorizando periferias e aeroportos.

Originalmente publicado no UOL 

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