“Louças de família”, poderoso romance de estreia de Eliane Marques, é vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura

Obra publicada pela Autêntica Contemporânea, Louças de família é marcada por construção textual inventiva, trazendo uma voz narrativa surpreendente

Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

“Louças de família”, primeiro romance de Eliane Marques, começa com a morte de uma mulher. Uma mulher negra. Uma mulher negra empregada doméstica. Mais uma mulher numa longa linhagem de mulheres dedicadas ao trabalho doméstico em casas abastadas. Tia da narradora, Eluma parece deixar para os que ficam apenas umas poucas dívidas. Contas de luz e água, algumas roupas compradas a prazo com uma irmã da igreja. “Coisas pequenas tão enormes para aqueles que as suportam, para as que ficaram com o dever de pagar, de manter limpo seu retrato”. Para além disso, o que fica de herança após esta morte?

Ancestralidade

A partir de Tia Eluma, a narradora de “Louças de família” segue um fio narrativo que percorre uma longa linhagem familiar de mulheres negras. De sua primeira ancestral conhecida até o presente, foram muitas as mulheres que a precederam que encontraram como única possibilidade a servidão à famílias brancas. As chagas abertas pela escravidão seguem abertas numa voz narrativa que se constrói a partir da negação: a narradora do romance de Eliane não quer repetir as histórias de suas antepassadas.

“Se qualquer uma de vocês pisar o dedão do pé, direito ou esquerdo, em qualquer cômodo do interior de qualquer das casas de família, nunca mais sairá; hoje vocês não sabem o que isso significa, mas, se não me ouvirem, saberão”.

Prosa ruidosamente construída

“Louças de família” é um romance ruidosamente construído, um verdadeiro manifesto contra a passividade, numa prosa que não busca a conciliação. “Não sei por que temos que ser pacíficas se o estado é pacífico conosco apenas quando nos nega saúde, educação, moradia, salário digno”. Psicanalista, Eliane Marques também desenha uma interessante linha de debate entre a narradora e sua analista ao longo romance, passando por questões como a memória e o trauma, o racismo, a meritocracia e a branquitude.

“Tive sessão às oito. Discuti com minhanalista, para ela não uma discussão, vez que sou paciente. Ela acha que é mito pessoas negras quererem ser analisadas por pessoas negras ao que respondi que seria um mito pensar que psicanalistas brancas estariam prontas para trabalhar com subjetividades construídas como negras ou pretas (…).”

Geração após geração

Assim como as louças de família – que passam de geração para geração – Eliane Marques observa como mulheres negras também, geração após geração, permanecem reféns de uma mesma ocupação – quando não de uma mesma família, servindo avós, pais, filhos, netos, bisnetos, numa linha do tempo imemorial.

Num discurso febril, marcado por um potente fluxo de consciência, onde a poesia e a oralidade se encontram – de uma inventividade marcante — tanto formando novas palavras, quanto dando novos sentidos a velhas palavras, o romance encontra caminhos para contar de uma dor, de um sofrimento e de um afeto que também é entregue como herança, geração após geração das mulheres desta família. As imagens evocadas por Eliane Marques em “Louças de família” são tão afiadas que perigam cortar, como uma louça trincada.

Encontre “Louças de família” aqui.

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)

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