“‘Entre Memórias e Marés’: uma noite no Teatro Municipal de Balneário Camboriú”, por Mauro Gaglietti

No dia em que o Brasil celebrava sua cultura, 5 de novembro, Balneário Camboriú recebeu um presente singular. Como uma dádiva que transcende o comum, “A Atriz”, protagonizada por Loreta Petlova (Lenita Novaes, a Dama da Cultura de Balneário Camboriú), descortinou-se diante de nossos olhos, tecendo uma tapeçaria temporal tão intrincada quanto as próprias ondas que beijam as areias desta cidade-verticalidade.

Assim como Machado de Assis nos presenteou com seu Brás Cubas, que narra com irônica lucidez suas memórias além-túmulo, Petlova nos conduz por uma dança existencial no qual cada gesto é uma página virada no grande livro da memória teatral. Sua performance, nascida das entranhas de luz do “Atlas Luminoso”, não apenas representa – ela transmuta-se em cada fragmento de lembrança, em cada suspiro de existência.

O espetáculo se equilibra qual ampulheta mística suspensa no tempo: em sua câmara superior, transborda um cálice de lembranças cristalinas, refrações de momentos que cintilam como o sol poente nas janelas dos edifícios; em sua parte inferior, repousa o receptáculo no qual as memórias se amalgamam com a mesma suavidade dos grãos de areia da praia local, testemunha silenciosa de tantas histórias.

Entre estas duas dimensões, escorre o tempo inexorável, marcando seu ritmo na passagem estreita que liga passado e presente. Como as marés que vêm e vão na orla de Balneário Camboriú, cada momento vivido no palco flui com uma inevitabilidade que ecoa a própria condição humana. As sombras projetadas pelos imponentes arranha-céus, que redesenham diariamente o horizonte da cidade, parecem dançar em sintonia com a narrativa cênica, criando um balé de luz e escuridão que espelha o próprio jogo entre memória e esquecimento.

Há uma ironia poética neste cenário urbano vertical que serve de pano de fundo para nossa reflexão: enquanto a cidade cresce para o alto, alcançando os céus em sua ambição arquitetônica, muitos de seus habitantes idosos encontram-se à sombra destes gigantes de concreto, lutando para acompanhar o ritmo frenético da modernidade. Suas próprias memórias, como as de Petlova em cena, são testemunhas de um tempo que se esvai, mas que permanece cristalizado em cada gesto, em cada olhar contemplativo direcionado ao mar.

Esta apresentação transcende o mero espetáculo teatral; torna-se um espelho onde nos vemos refletidos em nossa própria dança com o tempo, nossa própria luta entre o ser e o não-ser da existência contemporânea. Como os grãos de areia que escorrem pela ampulheta, somos todos personagens desta grande peça chamada vida na qual cada momento é simultaneamente eterno e efêmero, real e imaginário, presente e memória.

Lenita aos 85 anos de idade, guardiã desses cálices temporais, navega entre o cheio e o vazio de sua personagem, como o mar que testemunha a verticalização implacável da cidade. 

No palco sagrado da memória no qual dois mundos se encontram como cálices gêmeos de uma ampulheta existencial, emerge “A Atriz” – uma tapeçaria tecida no limiar entre o cheio e o vazio, entre o passado que escoa e o presente que acolhe. Como grãos de areia que deslizam entre as dimensões do tempo, Lenita Novaes dá vida à Loreta Petlova, uma artista cujos os anos são como um relógio de vidro invertido no qual cada memória é um grão dourado que cai, hesita, resiste.

O espetáculo equilibra-se como essa ampulheta mística – em cima, o cálice transbordante de lembranças cristalinas; embaixo, o receptáculo das memórias que se dissipam como grãos de areia na praia de Balneário Camboriú. Entre eles, a estreita passagem do tempo na qual cada momento vivido escorre com a inevitabilidade das marés, sob as sombras oscilantes dos arranha-céus que redesenham o horizonte da cidade.

Lenita, guardiã desses cálices temporais, navega entre o cheio e o vazio de sua personagem, como o mar que testemunha a verticalização implacável da cidade. Sua interpretação é o próprio gargalo da ampulheta, passado e presente se comprimem em um dance delicado – ora retendo, ora libertando as histórias de uma urbe que, como os grãos de areia, se acumula verticalmente em direção ao céu, enquanto seus habitantes mais antigos buscam réstias de sol entre as fendas dos gigantes de concreto.

O monólogo transcende a narrativa linear do tempo, tornando-se um ritual no qual cada gesto é um grão que cai, cada palavra um momento suspenso entre os dois mundos da ampulheta. Como viajantes entre dimensões, o público é convidado a contemplar esse objeto místico no qual a vida se mede não em minutos, mas em memórias – algumas que permanecem cristalinas no cálice superior da consciência, outras que se acumulam, transformadas, no receptáculo inferior do esquecimento.

“A Atriz” é mais que um espetáculo – é uma cerimônia em que o tempo se dobra sobre si mesmo, como a própria ampulheta que pode ser invertida para recomeçar seu ciclo eterno. Cada apresentação é um novo giro desse relógio místico, as histórias de Loreta fluem entre os cálices da existência, lembrando-nos que, como os grãos de areia, somos todos parte de uma dança infinita entre o lembrar e o esquecer, entre o construir e o desconstruir, entre o elevar-se aos céus e o permanecer firmemente ancorado às raízes da memória.

Na intersecção desses cálices temporais, onde o cheio encontra o vazio, nasce a magia do teatro – essa arte que, como a ampulheta, captura o infinito em um espaço finito, transformando cada grão de memória em um testemunho da eternidade da cultura”.

Mauro Gaglietti é professor universitário no Rio Grande do Sul e Santa Catarina e Curador do Café Filosófico

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