Governo registra 274 mil denúncias de violência contra crianças em 2024

Somente em 2024, foram quase 275 mil denúncias de violência contra crianças no Brasil. Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

As denúncias de violência contra crianças e adolescentes no Brasil lideram com folga o ranking do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) para esse tipo de ocorrência envolvendo grupos considerados vulneráveis. Em 2024, até o dia 9 de dezembro, data da última atualização, foram contabilizadas 274.999 queixas.

Em contrapartida, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça divulgados no relatório CNJ Justiça em número 2024 , há no Brasil apenas 11 varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente, com acervo total de 475 processos baixados e 1.320 pendentes, o que equivale a uma taxa de congestionamento de 74%.

O CNJ utilizou em seu relatório dados provenientes da Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (Datajud) e do Sistema Módulo de Produtividade Mensal (MPM), que possui o cadastro de todas as unidades judiciárias do país, com informações sobre as competências abrangidas em cada uma delas, a jurisdição e outros indicativos.

De acordo com o juiz Newton Carneiro Primo, titular da Vara da Infância e Juventude de Ananindeua (PA), a “escassez” de varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente contribui “de forma significativa” para o elevado número de casos de violência.

“A falta de varas especializadas sobrecarrega as varas comuns, levando ao acúmulo de casos de violência contra crianças e adolescentes. Essa sobrecarga atrasa os julgamentos e dificulta a aplicação da justiça, contrariando o espírito do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”, analisa o magistrado.

Primo explica que os juízes de varas especializadas são treinados especificamente para lidar com esses casos, enquanto magistrados e promotores das varas comuns podem não ter a mesma expertise. “A falta de varas especializadas, principalmente em regiões remotas como o Marajó, dificulta o acesso à justiça para as vítimas”.

O juiz aponta outros fatores para o alto índice de denúncias, como a “cultura da violência” arraigada na sociedade, que naturaliza a agressão e punição física; a pobreza e a desigualdade social, que expõem crianças e adolescentes a situações de vulnerabilidade, e a falta de políticas públicas eficazes de prevenção e combate à violência.

“A impunidade dos agressores envia a mensagem de que a violência é tolerada, incentivando sua prática. A naturalização da violência sexual, muitas vezes silenciada ou minimizada, também contribui para sua perpetuação. O medo, a vergonha ou a falta de confiança nas autoridades impedem muitas vítimas de denunciar”, acrescenta Primo.

Com base na sua experiência na magistratura, o julgador enumera os principais tipo de violência contra crianças e adolescentes: a sexual (abusos em geral, estupro de vulnerável e exploração sexual), a física (agressões, maus-tratos, tortura e homicídio) e as derivadas de negligência (abandono, falta de cuidados básicos com a saúde, educação e bem-estar).

Esse universo profissional inspirou Primo a escrever o romance Flor de Formosura para promover a reflexão sobre o tema e despertar empatia na sociedade. A obra retrata o drama de uma marajoara abusada em casa pelo pai. Ela foge para tentar refazer sua vida em Belém, mas se depara com um mundo hostil e é submetida à exploração sexual.

Para minimizar o atual cenário, o juiz defende a ampliação das políticas públicas de prevenção e combate à violência, com foco na educação, no apoio às famílias e na garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Ele também propõe a criação de mais varas especializadas, o fortalecimento dos órgãos de proteção e o incentivo às denúncias.

Entenda os números

Sobre as 274,9 mil denúncias registradas pelo MDHC, que reportaram mais de 1,6 milhão de violações, elas foram recebidas pelos canais Disque 100, Ligue 180 e aplicativo DH Brasil. Nesse cômputo não constam as queixas feitas diretamente aos números 190, 197 e 181, respectivamente, da Polícia Militar, da Polícia Civil e do Disque-denúncia.

O elevado número de violações em relação ao de denúncias decorre da possibilidade de apenas uma queixa ao MDHC atribuir mais de uma ocorrência do mesmo autor ou autora contra uma única ou múltiplas vítimas. As violências contra crianças e adolescentes representam 37,83% das 618,5 mil demandas recebidas neste ano pelo ministério.

Outros grupos vulneráveis vêm a seguir no ranking de denúncias ao MDHC: pessoa idosa (23,45%), mulher em razão do gênero (14,83%), pessoa com deficiência (12,33%), vítimas da categoria “cidadão, família ou comunidade” (8,9%), presidiários (1,14%), comunidade LGBTQIA+ (1,06%) e população de rua (0,44%).

Os dez estados com maior número de denúncias de violência contra crianças e adolescentes são: São Paulo (80.416), Rio de Janeiro (34.414), Minas Gerais (28.380), Rio Grande do Sul (14.014), Bahia (13.424), Santa Catarina (11.100), Paraná (10.845), Pernambuco (10.032), Ceará (7.517) e Goiás (7.332).

Em relação aos 15 municípios com mais queixas, São Paulo desponta na liderança, seguido por Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Manaus, Brasília, Salvador, Fortaleza, Recife, Campinas (SP), Guarulhos (SP), Campo Grande, Duque de Caxias (RJ), Porto Alegre, Nova Iguaçu (RJ) e Curitiba.

Caso Henry Borel

Em 2021, no Rio de Janeiro, a morte de Henry Borel, de 4 anos, acelerou a criação da 1ª Vara Especializada em Crimes contra Crianças e Adolescentes (Veca) da capital fluminense. Ele faleceu em decorrência de hemorragia interna e múltiplas lesões. O padrasto do menino é acusado de agredi-lo com a conivência da mãe da criança.

Segundo a juíza titular da 1ª Veca, Gisela Guida, a implantação da vara especializada era uma demanda que vinha de longo tempo, mas o caso do menino Henry Borel contribuiu. “Percebemos que casos como esses são mais bem detectados e mais bem trabalhados junto ao Poder Público quando tratados de maneira especializada”.

Originalmente publicada em Conjur

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