‘Cem Anos de Solidão’, na Netflix, superou preocupações de García Márquez com adaptação

Cena de “Cem Anos de Solidão”, da Netflix

“Cem Anos de Solidão” é o grande romance do escritor colombiano Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de Literatura em 1982. Esse tesouro acabou de chegar à Netflix em formato de uma minissérie de oito capítulos. O livro é uma das obras mais importantes da literatura latino-americana e uma das mais lidas e traduzidas em todo o mundo.

Durante o IV Congresso Internacional da Língua Espanhola, realizado em Cartagena, na Colômbia, em março de 2007, “Cem Anos de Solidão” foi considerada a segunda obra mais importante de toda a literatura hispânica, ficando apenas atrás de “Dom Quixote de la Mancha”, de Miguel de Cervantes. Valendo-se do estilo conhecido como realismo mágico e do romance histórico, “Cem Anos de Solidão” magnetizou milhões de leitores.

Em Bogotá, no dia 9 de outubro, foi lançado a série, recriando o mundo de Macondo, onde a história se passa. O filho do escritor e um dos produtores executivos da série, Rodrigo García Barcha, descreveu essa adaptação como um “projeto irmão” da obra literária, destacando que ambas as experiências se complementam.

A primeira edição foi publicada em Buenos Aires em maio de 1967 pela editora Editorial Sudamericana, com uma tiragem inicial de 10 mil exemplares. Já foram vendidos mais de 50 milhões de exemplares em 46 idiomas.

A adaptação consiste em duas temporadas de oito episódios cada e é dirigida pela colombiana Laura Mora e pelo argentino Álex García López. Conta com um elenco majoritariamente colombiano, somado a atores de outros países, como o espanhol Moreno Borja (Melquíades) e o peruano Salvador del Solar (Teniente Moncada).

“É uma experiência diferente e você deve tentar apreciá-la pelo que ela é, não comparando constantemente com o livro. Para mim, são projetos irmãos mais novos que se complementam”, disse Rodrigo à agência EFE.

“Esqueço o livro e procuro apreciar a série como série. Claro que existem todos os laços do mundo, mas, para aproveitar, me libertei de dizer: isso sim, isso não; parece que sim, não parece.”

Por outro lado, o desenvolvimento da série representou um grande desafio desde o seu início, especialmente porque García Márquez sempre relutou com a adaptação. Porém, segundo Rodrigo, o autor mudou de ideia ao considerar que uma série permitiria abordar a complexidade do romance com mais tempo e recursos adequados.

“Durante muito tempo, meu pai relutou bastante, principalmente com um filme de duas ou três horas que não cabia no romance inteiro. Mas com a Netflix, a possibilidade de fazer em espanhol, na Colômbia e com os recursos necessários nos convenceu de que era viável”, explicou Rodrigo.

A adaptação de uma obra-prima como “Cem Anos de Solidão” para a tela da Netflix trouxe grandes expectativas, tanto pela importância do livro na literatura mundial quanto pelo potencial que a série tem de capturar sua essência. No entanto, como toda adaptação, ela enfrenta desafios significativos.

Por isso, em um tempo em que adaptações literárias para as telas costumam omitir elementos controversos das obras, é interessante que “Cem Anos de Solidão” não se esquivou desses pontos, pelo menos dos principais.

Há histórias como a de meio-irmãos que se casam ou a de Aureliano, que pede em casamento Remédios, uma menina que ainda brinca de boneca. Os pais dela se horrorizam, mas dão sinal verde, pedindo apenas para esperar um pouco.

“Não podemos mudar o comportamento dos personagens porque eles nos deixam desconfortáveis”, diz o argentino Álex García López, um dos diretores da série. Há também muitas cenas de sexo para os padrões mais “puritanos” da Netflix.

Uma das principais dificuldades na transposição da narrativa rica e complexa do livro para a tela é a estrutura da própria obra. “Cem Anos de Solidão” é uma saga familiar que abrange gerações dos Buendía, marcada por um tempo não linear e uma infinidade de personagens com seus próprios arcos.

A série teve que selecionar quais elementos e personagens manter, e essa escolha nem sempre foi capaz de captar a profundidade do material original. A rica simbologia e as temáticas, como solidão, amor e destino, foram, em alguns momentos, simplificadas, o que pode deixar os espectadores menos familiarizados com a obra original em um estado de confusão.

O incesto entre os personagens, por exemplo, está fartamente retratado como um pecado original que retorna à casa dos Buendía, muitas vezes antecipando mortes terríveis. Basta lembrar que José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán, patriarca e matriarca que fundam a cidade fictícia Macondo, são primos — daí o medo que têm de gerar lagartos.

“Seria letal olhar a obra sob o prisma da correção política”, acrescenta a colombiana Laura Mora, também diretora. “O livro fala de relações quase que de uma tragédia grega, de símbolos trágicos da repetição. Tirar esses elementos seria tirar o coração da obra.”

Além disso, o texto de García Márquez é conhecido por sua prosa poética e a sutileza de suas metáforas, que podem ser difíceis de traduzir visualmente. A série, em busca de uma narrativa mais direta, por vezes pode perder a nuance e a ambiguidade que permeiam o livro, resultando em uma experiência mais superficial do que o original, mas não comprometendo a audiência da versão para as telas.

A série busca ser fiel ao espírito do romance, preservando o realismo mágico que caracteriza “Cem Anos de Solidão”. Nesse sentido, Rodrigo manifestou otimismo com a recepção da produção, destacando que ela foi desenvolvida em ótimas condições para homenagear o legado de seu pai.

Por outro lado, a cenografia se destaca como um ponto forte da série. A recriação de Macondo, a cidade fictícia onde se desenrolam os eventos, revela-se impressionante. A atenção aos detalhes, desde a arquitetura até a ambientação que captura a atmosfera mágica e melancólica do romance, realmente transporta o espectador para o universo de García Márquez. As cores vibrantes e a estética visual evocam a sensação dos momentos de realismo mágico que o autor tão habilmente descreve.

No entanto, a fidelidade aos escritos pode variar. Enquanto alguns momentos são brilhantemente recriados, outros parecem deixar de lado detalhes cruciais que são fundamentais para a compreensão da narrativa e seu impacto emocional. O desafio de equilibrar a fidelidade à letra e ao espírito do livro com a necessidade de uma narrativa coesa e envolvente para a televisão é algo que continua a ser debatido entre críticos e fãs.

“Cem Anos de Solidão” traz uma adaptação significativa, mas não isenta de desafios. Apesar da beleza visual e da imersão que oferece, a experiência pode ser um tanto desigual para aqueles que esperam a riqueza e a profundidade do texto original. Para os fãs do livro, pode ser uma porta de entrada interessante para revisitar a história, mas é preciso abordar a série com a consciência de que a magia das palavras de García Márquez é uma experiência única, que talvez nunca possa ser totalmente recriada na tela. Como lembrou o filho de Gabo, esta bela adaptação deve ser apreciada como um “projeto irmão”.

 

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