Operação Limpeza apagou rastros de massacre no Araguaia há 50 anos

(FOLHAPRESS) – Eram dois helicópteros da Aeronáutica para fazer o serviço. Entre os dias 1º e 10 de janeiro de 1975, cerca de 50 corpos de guerrilheiros foram desenterrados nas matas do Araguaia e transportados em sacos pretos de plástico nas aeronaves. O cheiro era perturbador.

Os pilotos colocavam algodão com perfume nas máscaras, para aguentar. Voavam até a serra das Andorinhas, no sul do Pará, e, ali, os agentes do Exército, à paisana, colocavam os corpos misturados a pneus e ateavam fogo.

O relato acima foi feito pelo coronel da Aeronáutica Pedro Corrêa Cabral, que pilotava um dos helicópteros, no âmbito do processo investigatório número 1.23.001.000018/2014-55, do MPF (Ministério Público Federal), acerca da ocultação de cadáveres por parte do Exército durante a Guerrilha do Araguaia.

A Guerrilha do Araguaia foi um movimento armado que aconteceu de 1967 ao fim de 1974, na região amazônica ao longo do rio Araguaia, no qual militantes do PC do B (Partido Comunista do Brasil) buscavam implantar uma revolução socialista nos moldes da Revolução Cubana de 1959.

O depoimento do coronel Pedro Cabral se refere à chamada “Operação Limpeza”, levada a cabo há exatos 50 anos, que teria o objetivo de ocultar cadáveres e todo tipo de prova da ação do Exército para exterminar os guerrilheiros.

“Quando terminou a guerrilha, chegaram à conclusão que não tem mais guerrilheiros, aí alguém falou assim: se a gente for embora e deixar do jeito que tá, vai ter muito repórter, gente da imprensa que vem pra cá e vai escavar por aqui e descobrir os corpos, então vamos fazer a operação limpeza”, disse Cabral ao MPF.

De acordo com o coronel, os agentes do Exército que iam nos helicópteros sabiam exatamente onde tinham enterrado os corpos na mata. “Eles falavam: pousa aqui nessa clareira, ou pousa aqui nessa estrada”, contou.

“Me lembro que uma vez pousei na estrada. Aí os agentes entravam para dentro da mata. Depois de uma hora, 40 minutos, vinham eles com os pacotes, botavam no helicóptero. Vinham em saco tipo do IML, um saco plástico preto. Geralmente fazia uma apanhada e ia para a serra das Andorinhas.”

A juíza Solange Salgado, titular da 1ª Vara da Justiça Federal no DF, que comandou a tomada de depoimentos de camponeses da região do Araguaia sobre a ação do Exército na guerrilha, ouviu deles que a chamada “Operação Limpeza” foi conduzida por homens vestidos à paisana, que diziam aos locais serem “familiares” que estavam recuperando os corpos de seus parentes.

Esses depoimentos fazem parte da ação que, em 2003, obrigou a União a apresentar documentos sobre o conflito e apontar a localização das sepulturas dos militantes mortos na guerrilha. Essa decisão, entretanto, jamais foi cumprida.

As ações judiciais sobre a Guerrilha do Araguaia foram arquivadas, sob o fundamento de que os atos praticados são abarcados pela Lei da Anistia, que concede perdão a crimes políticos e conexos ocorridos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

Em 15 de dezembro passado, o ministro Flávio Dino, relator de um recurso impetrado pelo MPF junto ao STF (Supremo Tribunal Federal), considerou que a Lei da Anistia não se aplica a esses casos, já que a suposta ação criminosa (ocultação de cadáveres) se prolonga no tempo, em atos posteriores à vigência da lei. O caso será agora analisado pelo plenário do STF.

Procurado para se manifestar sobre as acusações do MPF, fundamentadas pelo depoimento do coronel Pedro Corrêa Cabral, o Centro de Comunicação Social do Exército afirmou que “a Força não se manifesta sobre processos em curso, conduzidos por outros órgãos, procedimento que tem pautado a relação de respeito do Exército Brasileiro com as demais instituições da República”.

Por outro lado, familiares de guerrilheiros do Araguaia, que jamais tiveram acesso aos corpos de seus parentes, comemoraram a decisão de Dino. “Foi um dia histórico para as famílias”, disse Marta Costa, sobrinha de Helenira Resende, estudante da USP que militava no PC do B e desapareceu no Araguaia em 1972.

“Lembro-me da primeira vez que estive no Araguaia fazendo parte do grupo de familiares na buscas pelas ossadas de nossos parentes”, contou Marta. “Fiquei impressionada com a imensidão da mata, com a pobreza explícita daquele lugar.”

Segundo a sobrinha da guerrilheira, a ausência do corpo da tia prolonga ao longo dos anos o sofrimento da família. “O desaparecimento da tia Nira é uma marca indelével na nossa família, e essa luta será passada de geração em geração”, disse.

“A sensação é a de que a angústia nunca passa, ainda hoje, 50 anos após o final da guerrilha, as famílias seguem sem saber o destino dos guerrilheiros, os arquivos do Exército não foram abertos, os responsáveis não foram punidos, as ações impetradas pelo Estado brasileiro se arrastam na Justiça.”

De acordo com o historiador Luiz Antonio Dias, que desenvolve estudos sobre ditaduras e democracias, a chamada “Operação Limpeza”, que buscou ocultar provas da ação do Exército na Guerrilha do Araguaia, não foi uma exclusividade dos militares brasileiros.

“A ocultação dos corpos foi muito comum tanto no Brasil quanto nas demais ditaduras do Cone Sul, inclusive com cooperação entre os governos militares”, disse. “É interessante destacar que, em 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, justamente por não investigar esses ‘desaparecimentos’ forçados e não identificar os corpos dos guerrilheiros no Araguaia.”

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