Volta às aulas em SP com proibição de celular tem confusão na rede pública e educadores contra a lei: “Não vai funcionar”

Foi de confusão a volta às aulas com a proibição dos celulares na rede pública estadual de São Paulo, nesta segunda-feira (3), pelo menos no período da manhã. A precariedade, com turmas lotadas, na maior parte das escolas ouvidas pelo Metro, tornou as legislações estadual e federal praticamente sem efeito. Por outro lado, educadores ouvidos em sua grande maioria divergem e criticam a nova ordem.

O projeto de lei nacional que proíbe a utilização de aparelhos eletrônicos portáteis, incluindo celulares, por estudantes nos estabelecimentos de ensino público e privado da educação básica foi sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 13 de janeiro.

A medida, segundo o governo, “visa salvaguardar a saúde mental, física e psíquica de crianças e adolescentes, promovendo um ambiente escolar mais saudável e equilibrado”.

De acordo com a Lei nº 15.100/2025, é vedado o uso de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais durante aulas, recreios e intervalos em todas as etapas da educação básica. A vedação não se aplica ao uso pedagógico desses dispositivos. As exceções são permitidas apenas para casos de necessidade, perigo ou força maior. A lei também assegura o uso desses dispositivos para fins de acessibilidade, inclusão, condições de saúde ou garantia de direitos fundamentais.

“Esse problema do uso de celulares é muito grave principalmente no Ensino Médio. Em menor grau, até no Superior existe. E a gente observa que o aluno que faz uso do celular em classe é justamente aquele que tem maior dificuldade de aprendizado”, diz o professor da rede Fatec e pedagogo Dalmacio Almeida. A lei não vale para o Superior.

Segundo ele, a precarização da rede pública vai dificultar a fiscalização, e parte dos alunos deve continuar a dar o seu “jeitinho” para fazer uso do celular. “Tende a não funcionar, se deixarem a cargo do aluno desligar o celular e guardar na mochila. Acredito que deve haver um compartimento particular para que eles guardem seus aparelhos ao chegar na escola, aí sim, quem sabe”, afirma.

Almeida já identificou uma corrente contra a lei entre pais de alunos. “Há aqueles que criticam a proibição durante o intervalo, pois acreditam que a comunicação com os filhos é essencial”, revela.

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A França, Espanha, Grécia, Dinamarca, Itália e Holanda já têm legislações que restringem o uso de celular em escolas. O Ceará tem uma lei desde 2008. Não funcionou. Neste ano, aproveitando a lei federal, foi mais rígido e adotou novas normas, na esperança de que o celular pessoal seja banido, já que disponibiliza computadores e tablets para o uso pedagógico.

Um orientador pedagógico de uma escola da Zona Sul da capital, pertencente à rede estadual, e que pediu para não ser identificado, foi enfático: “Os desafios são, principalmente, a estrutura para você garantir que os alunos não usarão o celular em sala de aula. Isso significa que não adianta nós termos uma lei que proíba o uso do telefone, se nós tivermos salas de aula lotadas em que o professor não consegue ter acesso ao que está acontecendo, por exemplo, no fundo da sala de aula. Então, quanto mais alunos por turma, menor é a capacidade de o professor verificar se a lei está sendo cumprida. Hoje foi um confusão, até com alguns momentos de tensão. Confesso que não estamos preparados para isso”, alerta.

E foi o que aconteceu nas voltas às aulas, nesta segunda-feira (3). “Todo mundo que eu vi estava dando um jeito e dando uma espiadinha sempre que dava. No final da manhã, os professores não estavam nem falando mais nada. No intervalo, eu fiquei conversando no WhatsApp com meu namorado, que estuda em outra escola. E vou continuar a fazer isso, não me importo”, conta Bianca, aluna do 2º ano do Ensino Médio de uma escola da Zona Leste.

“Com toda certeza, eu vou preferir olhar dez TikToks do que assistir uma aula que eu acho chata ou que eu acho que não me ajuda em nada. Se a aula fosse mais interessante que o TikTok, se o que estivesse aprendendo ali eu achasse mais importante do que assistir esses dez TikToks, é claro que eu iria abandonar o celular e prestar atenção na sala de aula”, diz Kléber, do 2º ano de uma escola pública da Zona Sul.

Do lado dos professores, também não foi fácil. “Nós tivemos uma dificuldade muito grande, que foi, a partir do momento que a gente dizia ‘você não pode usar o celular’, não se sentir à vontade em pegar o celular do aluno. Se pega do aluno e aí o aparelho cai no chão e o aluno diz ‘o meu celular não estava com a tela trincada’. E aí? Quem paga por esse prejuízo? De maneira muito objetiva, falta estrutura ainda para que haja a garantia de que o celular não seja usado na sala de aula”, reforça uma professora da mesma escola. “Ou eu leciono para uma turma lotada e que não me respeita ou viro fiscal do celular”, reclama.

Na sexta (31), o Ministério da Educação (MEC) divulgou uma cartilha para todas as escolas em que diz que a restrição ao uso de celular em escolas não deve ser generalizada a qualquer custo. A pasta apresentou diretrizes sobre a lei e ressaltou a possibilidade de adaptação conforme as necessidades e contextos específicos das redes e unidades de ensino.

Os professores, segundo o documento, devem ser preparados para enfrentar situações do tipo com flexibilidade. Assim, as escolas devem promover oficinas e encontros que abordem boas práticas no uso pedagógico da tecnologia, incentivando o planejamento intencional e a integração responsável dos dispositivos nas atividades educacionais.

Também será responsabilidade de cada instituição estabelecer espaços seguros e estratégias para o armazenamento dos celulares. O MEC recomenda que os estudantes não levem o aparelho para escola, a menos que uma atividade pedagógica esteja planejada.

A pasta ainda pede a realização de rodas de conversa com a comunidade escolar para avaliar a aplicação da lei, além da revisão permanente das práticas adotadas. Espaços de acolhimento a alunos, para ouvir reclamações e sugestões, são incentivados.

A cartilha foi encarada com ironia por um professor do curso noturno de uma escola da rede estadual da Zona Leste, que também pediu para não ter o seu nome divulgado, com medo de represálias. “Nas minhas aulas, sempre busquei ser disciplinador. Até que isso me gerou muitos problemas, como ameaças. Aí eu desisti, para minha segurança. Os alunos, não importa a aula que seja, usam aquelas caixinhas de som, fumam vape. Como você obriga um elemento assim a não usar o celular?”, questiona. “Falar em ‘flexibilização’ é muito bonito nos gabinetes de Brasília; quero ver aqui, na sala de aula”, complementa.

Educadores

Adriana Barroso de Azevedo, doutora em Comunicação Social e pós-doutora em Educação, diretora de Educação da Rede Metodista e Professora da Pós-graduação em Educação da UMESP e da USCS, diverge da lei.

“Creio que a proibição seja equivocada. Estamos há anos pesquisando os usos pedagógicos do celular em sala de aula e sabemos que pode ser um instrumento potencializador de aprendizagens. Precisa regular esses usos, ter acordos entre docentes e alunos, mas proibir não. Na era digital, da convergência e das interações, acredito que seja difícil manter essa lei. Certamente caberá ao professor a fiscalização e o papel de vilão, não permitindo a presença dessa tecnologia na sala de aula. Torço para que essa lei não fique, que se permita uma solução dialógica entre escola e alunos, que cheguem a acordos produtivos para esses usos do celular na escola, pois eles existem”, opina.

Sobre a questão da precarização da rede pública em si, ela diz que “não é isso. Creio que faltou diálogo para fundamentar a lei. Proibir torna mais interessante. É assim na vida, e a escola é parte da vida. O celular estará em todas as escolas, independentemente de sua natureza”.

Para Carlos Antonio Vieira, professor e coordenador do curso de Pedagogia da Estácio, a proibição do uso do celular em sala de aula pode prejudicar o processo de construção de saberes pelos educandos. “O celular, desde que utilizado de forma adequada pelos alunos, pode refletir de forma positiva no aprendizado. A solução não é proibir e sim readequar e construir de forma coletiva como esse deve ser utilizado”, sustenta.

“Tenho a convicção que não temos condições de ter um controle 100% efetivo do uso desse equipamento (nas escolas). Pela estrutura que temos hoje em nossas escolas, pensando que essa lei não teve uma consulta pública, existe uma probabilidade muito grande dessa lei não vingar”, projeta.

Uma questão delicada, e que o MEC deixou para cada escola resolver, é aonde deixar o celular durante o período de aulas e intervalos. “Essa será uma tarefa árdua para as escolas, na medida em que a mesma não tem espaço adequado para essa finalidade, nem funcionários para essa tarefa. Penso que cada sala de aula deve ter um escaninho com chave, onde o próprio aluno guarda e retira esse equipamento quando autorizado. Empresas que prestam serviços para as escolas já estão pensando nessa possibilidade. Algumas escolas disponibilizam armários para que os alunos guardem seus pertences, esse seria um outro caminho, no entanto, os custos podem impedir essa alternativa”, diz.

Para a head pedagógica Vanessa Codecco, há um outro problema. “A proibição do uso de celulares nas escolas se tornou necessária diante do uso excessivo e dos impactos negativos no aprendizado e nas interações sociais dos alunos. No entanto, é importante lembrar que, se não houver uma orientação clara e uma conscientização sobre como utilizar a tecnologia de forma saudável e equilibrada, essa medida pode acabar apenas transferindo o problema para outro lugar. Em vez de resolver, pode se intensificar o uso dos celulares em casa, sem a supervisão necessária. A educação digital e a promoção de hábitos responsáveis são essenciais para que a tecnologia seja aliada no desenvolvimento dos estudantes, e não um obstáculo”, diz.

Para Wagner Venceslau Dias, diretor pedagógico do Colégio Anglo Leonardo da Vinci, a tecnologia tem sido uma das principais ferramentas de transformação na educação, permitindo que alunos e professores explorem novas formas de aprender e ensinar. “Contudo, a recente sanção da lei que restringe o uso de celulares reacendeu o debate sobre os limites e as possibilidades da utilização desses meios tecnológicos na sala de aula, o que, ao meu ver, pode ser visto como uma oportunidade de redefinir o papel dela no setor educacional”, opina.

Conforme o diretor, o objetivo não é banir a tecnologia das escolas, mas garantir que ela seja usada de forma consciente e pedagógica em diferentes períodos de aprendizagem e conforme a idade dos alunos. Para isso, há o desafio de equilibrar a utilização de ferramentas tecnológicas com momentos de interação social e de ensino tradicional.

Para ele, “embora os celulares sejam frequentemente associados à dispersão em sala de aula, ainda há muito o que aproveitar dos equipamentos digitais para engajar os estudantes e estimular o pensamento crítico”.

“Com as gerações mais jovens, por exemplo, uma excelente opção é visar a preparação para vestibulares, mercado de trabalho, cibersegurança e o uso ético. Para algumas turmas do ensino fundamental, as plataformas de ensino gamificadas, que transformam o aprendizado em um conhecimento divertido e interativo, também podem ser um ótimo caminho”, destaca Dias.

Dias informa que no Leonardo da Vinci, que é particular, já havia, antes das leis, restrições sobre o uso em sala de aula. “Estamos trabalhando tanto com os alunos, como com as famílias, uma ampla pauta de comunicação sobre os propósitos das leis que foram criadas e as formas de verificar os pontos positivos do uso controlado, no caso fora da escola. Também foi criado um protocolo em caso de violações, onde a escola tomará medidas graduais até o ponto de recolher durante o período de aulas. O mais importante é mostrar que se há uma lei a escola não pode ser conivente com a violação dela”, garante.

No colégio, os alunos estão sendo orientados a deixar os celulares guardados dentro da bolsa, jamais com eles. Inclusive no intervalo. Ao final do horário de aula, ao saírem da escola, os alunos podem utilizar o dispositivo.

Nas particulares, onde as aulas começaram mais cedo e em geral as turmas são menores e há mais controle e estrutura, a mudança também foi sentida pelos alunos. Rodrigo dos Santos, estudante do 6º ano do Colégio Estrela Sírius, disse que no começo, achou “muito estranho” não poder usar o celular na escola. “Eu estava acostumado a mexer no intervalo e até durante algumas aulas. Nos primeiros dias, senti que faltava alguma coisa e parecia que o tempo não passava. Mas agora já me acostumei e até estou gostando. No recreio, comecei a conversar mais com meus amigos e brincar mais, e nas aulas eu presto mais atenção. No fim, acho que até melhorou”, relata.

Já Gabriel Anacleto, do 1º ano do Ensino Médio no Colégio Santa Tereza, não está tão entusiasmado assim. “Eu entendo o motivo da lei, mas, sinceramente, acho que ela não precisava ser tão rígida. O celular sempre foi uma ferramenta importante para mim, principalmente para pesquisar conteúdos durante as aulas e organizar meus estudos. Agora, sem ele, às vezes fico com dúvidas e não consigo buscar respostas na hora. Além disso, no intervalo era um momento que eu usava para relaxar, ouvir música e até resolver coisas importantes. Acho que seria melhor se tivesse um equilíbrio, ao invés de proibir totalmente”, opina.

Lacuna

Segundo o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, os professores, no geral, apoiam a proibição dos celulares nas salas de aula, mas apontam alguns desafios para colocar a medida em prática: “Onde vai ficar esse equipamento? Em que momento da aula você precisa do celular para que o conteúdo chegue com facilidade para entendimento por parte do estudante? Em que momento ele vai ser utilizado? Em que momento ele volta a ser guardado? E aí você vem para a escola pública e pergunta, a escola pública está equipada para isso? Tem segurança em guardar o equipamento do aluno sem estragar, sem perder o equipamento? Tem condições de fazer um planejamento onde sabe que momento o equipamento pode ser utilizado para aprimorar o conhecimento e que momento ele não deve ser utilizado?”, questiona Araújo.

Para ele, deveria haver uma discussão maior nas redes de ensino. “Tudo isso precisaria de um aprofundamento. Uma lei que vem de cima para baixo, sem um fortalecimento da gestão democrática da escola, sem um fortalecimento da participação dos segmentos da comunidade escolar discutindo o tema, vai ficar inviável, porque você vai criar mais problemas, não vai conseguir cumprir a lei como ela determina”, diz.

Araújo vai além. “A gente acredita, inclusive, que em muitos territórios e em muitos lugares, a única tecnologia que os estudantes secundários têm acesso é através do celular. Se a gente retira esse aparelho das salas de aula, a gente pode, inclusive, fazer com que esses estudantes não tenham acesso a nenhum tipo de tecnologia”.

Punições

Em documento encaminhado no dia 27 de janeiro, a Secretaria de Estado de Educação (Seduc-SP) trouxe orientações para a adoção da nova lei (o Estado decretou uma legislação no ano passado, para aplicação nesse ano letivo).

Na sugestão do que fazer em caso de descumprimento da norma, a Seduc-SP elaborou uma série de medidas a serem adotadas pela direção da escola. Caso ocorra durante as aulas, o professor deverá comunicar à gestão escolar ou ao profissional orientador de classe, que tomará as medidas cabíveis, incluindo o recolhimento do dispositivo. Nesse caso, o aluno deverá assinar uma declaração sobre as condições do aparelho, que será registrado para controle, e o episódio registrado no aplicativo Conviva (Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar).

Na reincidência, o estudante será encaminhado para uma conversa com a direção. Caso o comportamento persista, a equipe gestora convocará os pais ou responsáveis para uma reunião. Se os responsáveis não comparecerem ou não justificarem a ausência, o Conselho Tutelar poderá ser acionado para acompanhar a situação.

Em casos extremos de descumprimento contínuo, a escola avaliará a necessidade de envolver a Rede Protetiva (Conselho Tutelar, CAPS, UBS etc.), além do monitoramento da conduta do aluno com apoio da equipe psicológica da escola.

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