Afetados por rompimento da barragem da Samarco perderam 2 anos de expectativa de vida saudável

MARIANA, ITUETA, GOVERNADOR VALADARES E RESPLENDOR, MG, (FOLHAPRESS) – O agricultor Cândido Oliveira, 44, sofre há quatro meses com alergias persistentes desde que caiu por descuido no rio Doce, em Governador Valadares, município de Minas Gerais que fica a cerca de 320 km de Belo Horizonte. O corpo coça, pinica e descasca.

Ele evitava contato com a água do local desde 2015, quando, no dia 5 de novembro, ocorreu o rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana. O desastre liberou 43,8 milhões de metros cúbicos de rejeitos, provocando 19 mortes e gerando impactos para populações de dezenas de cidades mineiras e capixabas ao longo da bacia do rio Doce. Cândido crê que os resíduos que contaminaram o rio deixaram também as marcas na sua pele.

“Às vezes, sinto calafrios”, diz. “O que fizeram foi matar nosso rio.” Ao acordar, ele toma o antidepressivo sertralina, contra a ansiedade. Para dormir, usa um creme dermatológico.

A agricultora Lindalva Semeão, 54, navegava pelo rio Doce no dia da tragédia. Ela foi empurrada por uma onda até a margem. O casebre onde Lindalva criava animais, em Governador Valadares, foi destruído. Hoje, em um armário, guarda as cartelas de ansiolíticos. “Depois da lama, nunca fui mais a mesma”, afirma.

As histórias corroboram com a conclusão de uma pesquisa da FGV (Fundação Getúlio Vargas), concluída em janeiro deste ano, que afirma que a expectativa de vida saudável dos sobreviventes da barragem diminuiu 2,39 anos em 45 municípios atingidos pelos rejeitos –o equivalente a 424 mil pessoas.

A estimativa se refere a quantidade de anos esperada que um determinado grupo populacional viva com saúde.

O estudo detectou que 92% dos problemas de saúde dos territórios afetados estão concentrados em doenças respiratórias, câncer e de saúde mental.

Após o desastre, houve um aumento de 40% nas notificações de câncer nos municípios atingidos. Em locais similares da análise, este crescimento foi menos da metade no mesmo intervalo.

A pesquisa usou dados e comparou registros do SUS (Sistema Único de Saúde) sobre a saúde entre municípios atingidos e não atingidos com características semelhantes.

Os rejeitos liberados no rompimento da barragem tinham metais pesados, como arsênio, sílica, manganês e mercúrio e foram levados por centenas de quilômetros pelo rio Doce, em Minas Gerais, até o Espírito Santo.

A Samarco, uma empresa da Vale e BHP, diz que os resíduos analisados não “apresentam potencial para gerar efeitos negativos à saúde humana”.

Uma das autoras do estudo da FGV, a epidemiologista Rita Daniela Fernanda Medina afirma que pesquisas calculam que o material deve levar mais de um século para desaparecer do ambiente. “Nós sabemos, por meio da literatura científica, por exemplo, que o arsênio está ligado a casos de câncer”, diz.

Para Medina, o contato com o material pode ter criado enfermidades físicas, enquanto a devastação do estilo de vida e a década em busca de indenizações pioraram as enfermidades mentais.

“O impacto no rio, por exemplo, destruiu o tecido social dessa população”, diz. “Foi um desastre em cima do desastre.”

Até 2015, as ruas do subdistrito de Paracatu, em Mariana, eram planas.

Nelas, havia uma escola, uma igreja, um bar, que resistiram parcialmente ou foram reduzidos à ruínas. Hoje, os mesmos caminhos são ladeados por pequenos morros verdes, formados pela lama, que à primeira vista são confundidos com a paisagem natural ondulada de Minas Gerais.

Segundo o produtor rural Marino D’Angelo Junior, 53, Paracatu se dividiu com o desastre. Uma parte aceitou negociar. Outra, não. A comunidade rachou. “Vi familiares passando a perna um no outro para fazer negociações”, diz. Os vizinhos também discordaram do local da “nova Paracatu” oferecida pela mineradora.

A pressão fez Marino renunciar à liderança da comissão local, aceitar o aluguel de um sítio e o tratamento psicológico e psiquiátrico oferecidos como compensação pela mineradora. “Nunca tinha visto um psiquiatra. Na primeira consulta, sentei na frente dele e só chorei”, diz.

A “nova Paracatu”, porém, remete a um condomínio fechado de classe média. Na antiga, permanece a lama que chegou ao segundo andar de uma escola. Lá, as carteiras dos estudantes continuam enfileiradas.

Os livros didáticos estão abertos nas mesmas páginas há quase uma década. Em um deles, foi deixado um exercício de álgebra pela metade, com rabiscos nas bordas, na mesma sala onde uma pichação em barro relembra: “aqui morreu uma biblioteca”.

Marino sente saudades e nervosismo ao rever o antigo subdistrito. Costumava se ver como um bem-sucedido produtor de leite, com funcionários do bairro que conhecia desde a infância.

Após o rompimento, dispensou três deles para tocar os trabalhos com apenas um encarregado em ajudá-lo no dia a dia. “Não foi só uma barragem que rompeu. Amizades e laços se romperam. Tudo”, lamenta-se.

Segundo a Samarco, 34 profissionais de saúde foram contratados, entre médicos, enfermeiros, psicólogos e psiquiatras, em Mariana, um investimento de R$ 27,77 milhões. Em Governador Valadares, R$ 75,3 milhões foram repassados para o maior hospital da cidade. Um fundo de R$ 150 milhões também foi transferido para o governo estadual de Minas para o atendimento de 36 municípios.

Água sobre rejeitos

Para Isaac dos Santos, 66, o estouro da barragem é o seu segundo estágio de adoecimento. Há 20 anos, o município de 6.000 habitantes de Itueta, a 350 km de Mariana, foi afundado para criar uma estação hidroelétrica da Vale. Uma nova, mas estranha Itueta foi erguida ao lado.

“Quando nós estávamos praticamente acostumando com a saudade, veio o novo rompimento”, diz.

Os rejeitos da barragem de Fundão chegaram às águas do rio Doce onde estão submersos os escombros da Itueta onde ele cresceu e se tornou pescador.

Com a idade, contraiu uma fibrose pulmonar que o tomou o fôlego. No último ano, tentou recuperá-lo com a proposta da Copasa, a companhia de água do estado mineiro, em retomar o bombeamento d’água do lago afetado pelos rejeitos.

Em nota, a Copasa afirma que cumpre determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) de não utilizar a água até que novos testes comprovem a qualidade do consumo. Hoje, são transportados 950 metros cúbicos de água por dia para o abastecimento de Itueta. A Samarco confirma que novos testes serão realizados na água.

Para março, a Samarco divulgou um novo pacote indenizatório para os municípios atingidos, com R$ 12 bilhões que serão repassados ao longo de 25 anos somente para a área da saúde após negociações com o estado brasileiro e o inglês.

O valor será distribuído a moradores que não selaram acordos prévios ou não acionaram a Justiça até 2021. Será estabelecido um pagamento de R$ 35 mil como indenização definitiva pelo rompimento da barragem. Neste mês, 21 municípios negaram o acordo.

Enquanto isso, Isaac continua a pilotar um pequeno barco a motor para rodear a represa em cima da antiga cidade, apontando ali lugares que costumava conhecer.

“Foi a nossa bomba de Hiroshima”, se queixa. “Aqui aconteceram muitas mortes. Mortes sentimentais.”

O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde

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