Todos estamos em ‘O Quarto ao Lado’: por que Hollywood ignorou o chamado de Almodóvar. Por Sara Vivacqua

O diretor Pedro Almodovar.Foto: Reprodução

Pedro Almodóvar, o eloquente cineasta espanhol de “O Quarto ao Lado”, tornou-se internacionalmente inconfundível por seu apreço pelo repulsivo, pelo grotesco e por sua visão quase poética do kitsch e da paródia. Seus personagens, sem qualquer filtro e muitas vezes questionáveis, atravessam limites com tamanha brutalidade e verdade que acabam ilustrando, de maneira incomparável, a fusão entre tradição e transgressão, desejo e controle.

Almodóvar não teme trazer à tona os aspectos mais sombrios da alma humana, que frequentemente culminam na tela em imagens explosivas de dor e desejo. Sem dúvida, é um mestre do cinema contemporâneo.

Em “O Quarto ao Lado”, seu primeiro longa-metragem em inglês, Martha (Tilda Swinton), deitada em um leito hospitalar, deseja morrer em um lugar imune às memórias de sua vida, longe de qualquer possibilidade de introspecção ou nostalgia. Sua escolha é uma overdose de opioides, que suprime o sofrimento e, por fim, a respiração, em um último ato de liberdade diante do esgotamento dos desejos, ou da eutanásia.

Enquanto a repórter de guerra Martha (Tilda Swinton) lida com o diagnóstico de câncer, a autora Ingrid (Julianne Moore) enfrenta seus próprios demônios e incertezas sobre a morte. Foto: Reprodução

“O Quarto ao Lado”

A figura espectral de Martha já carrega os sinais da morte iminente.

O câncer terminal a apaga lentamente, jogando-a entre agitação e delírio, esperança e depressão, tornando-a cada vez menos lúcida e fazendo-a questionar sua própria coerência. Ainda assim, ela está decidida a se libertar, mas se recusa a morrer sozinha e esquecida – um destino que testemunhou inúmeras vezes como repórter de guerra, vendo a aniquilação de memórias individuais e coletivas.

Na simetria que percebe em seu trauma, não há ninguém que possa preservar sua memória e sua verdadeira história. Nenhum cúmplice em seu próprio fim. Mas, como acontece com muitos personagens de Almodóvar, o acaso a conduz ao seu destino, fazendo-a depender da solidariedade de estranhos e de laços há muito esquecidos.

Uma velha amiga que ressurge é Ingrid (Julianne Moore), autora de best-sellers de autoficção sobre a mortalidade, embora ainda imatura e aterrorizada pelo tema. De maneira ficcional, Ingrid também colocou a morte no centro de sua vida. Após anos afastadas, suas histórias paralelas – sobre a morte e o medo dela – colidem inesperadamente.

Martha pede à amiga que testemunhe sua morte como um retrato digno da mortalidade, onde a amizade supera o amor e os laços de sangue se tornam distantes, perdidos, indiferentes ou inexistentes. Sua única solicitação é que Ingrid esteja no quarto ao lado, nada mais, enquanto a vida e o desejo se esvaem pouco a pouco, como “a descida de seu último fim”.

É um apelo por aceitação total da nossa proximidade inevitável com a tragédia, diante da qual a única resposta sensata é a humanidade simples. Frente às tragédias inevitáveis, ciência, dogmas, moral e leis se mostram mais impotentes do que a própria condição humana. No quarto ao lado, os instintos de morte e de vida tornam-se indistinguíveis.

Este é Almodóvar em sua essência mais profunda, com uma genialidade renovada.

Almodóvar: vaiado em casa, aclamado no exterior

Almodóvar diz, em suas próprias palavras, que sempre foi autobiográfico e que concebe “a impossibilidade de separar a criação da própria vida”. São suas origens e memórias de Calzada de Calatrava, um pequeno vilarejo católico e patriarcal em Castela-La Mancha, que o levaram a criar uma caricatura violenta dos tons sombrios da alma espanhola. Seu olhar, tão preciso em despir as realidades culturais, fez com que frequentemente fosse vaiado em seu país, enquanto no exterior sua abordagem dos excessos humanos era vista apenas como um estilo.

Agora, porém, Almodóvar se distancia de suas raízes e daquilo que, em grande parte, o formou como cineasta. Ele entra em “O Quarto ao Lado”, seu primeiro longa em inglês, colocando a tragédia humana em Nova York, inspirado no livro “What Are You Going Through” (2020), de Sigrid Nunez.

É compreensível que a rejeição de seu próprio país tenha levado a uma série de esnobes notáveis no Oscar, como quando a Espanha não submeteu seus maiores filmes para a categoria de Melhor Filme Internacional – “Fale com Ela” (2002), preterido por “Segunda-Feira ao Sol”, “Volver” (2006), trocado por “Salvador”, e “Mães Paralelas” (2021), substituído por “O Bom Patrão”.

Mesmo assim, a Academia contornou sua ausência, reconhecendo seus filmes em outras categorias, especialmente roteiro e atuação. Deixar de fazê-lo teria sido um erro imperdoável. Mas, desta vez, não houve exceção.

Esnobado por Hollywood

“O Quarto ao Lado” ficou fora da lista de indicados ao 97º Oscar em todas as categorias, apesar da aclamação da crítica e de diversos prêmios internacionais.

Que tipo de consenso precisou prevalecer em Hollywood para ignorar uma obra de arte tão realizada, sem medo de críticas ou prejuízo à reputação? Teria Almodóvar se arriscado demais ao se afastar da Espanha e escolher os Estados Unidos como cenário de desejos agonizantes e da decadência da humanidade?

A “Lei do Desejo” indomável de Almodóvar, o oxímoro que ele usa para definir sua própria obra, parece ter exigido a alegoria de uma sociedade diferente para encontrar seu lugar no pequeno e hermético quarto ao lado.

É um espaço de emoções claustrofóbicas, com a América figurando, não por acaso, como epicentro das tragédias humanas contemporâneas. A morte da humanidade, para Almodóvar, acontece em uma sociedade que exalta a eficiência do impessoal, profundamente aterrorizada por seus próprios medos, ansiosa por controle e autocontrole, agarrando-se devotamente à regimentação da natureza humana imprevisível e buscando refúgio em zonas de segurança sufocantes, das quais quase ninguém pode entrar ou sair.

Talvez uma reflexão involuntária sobre a libertação coletiva.

Almodóvar, como sempre, não perdoa ao transformar a audiência em protagonista de sua história, e os Estados Unidos recebem um papel especial. Ele nos coloca a todos naquele quarto ao lado, onde o fim inevitável de Martha se confunde com nosso destino coletivo.

Todos estamos no quarto ao lado

Sentado em um restaurante luxuoso, esteticamente frio e distante das muitas dores e realidades, Damian (John Turturro), um amigo em comum e ex-amante, só consegue demonstrar uma empatia grosseira ao lembrar Ingrid de um desastre ainda maior que compartilharam.

Ele a arrasta para uma conversa apocalíptica e, por meio de suas palavras, “o quarto ao lado se torna nossa posição geral no mundo e diante de todas as suas tragédias”, como descreveu Tilda Swinton em uma entrevista ao “Deadline Hollywood”.

Damian prevê, com autoridade convincente, o fim coletivo de uma sociedade terminalmente doente, à beira da catástrofe climática, consumida pelo ódio e governada pela destruição simbiótica do neoliberalismo e da extrema-direita.

Ele já perdeu toda a esperança.

Em “O Quarto ao Lado”, Almodóvar em parte renuncia à extravagância pela qual é conhecido. Fala de maneira delicada e íntima sobre um turbilhão de emoções e, por meio da atuação magnífica de Tilda Swinton e Julianne Moore, em cenas contidas e diálogos quase silenciosos, a tragédia e a humanidade se desdobram.

Tudo o que resta é a contemplação daquilo que realmente importa. E talvez Almodóvar nos lembre, sem suavidade, que testemunhar nossa própria humanidade deve ser o ponto de partida dentro da tragédia.

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