Como Fux inverteu a lógica que usou na Lava Jato para enfraquecer delação de Cid

Luiz Fux e Jair Bolsonaro

O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), apresentou uma mudança radical em seu entendimento sobre as condições de validade da delação premiada em um processo penal. Com um discurso de pouco mais de dois minutos, inverteu tudo o que defendeu durante a operação Lava Jato e até hoje, para colocar em dúvida a legalidade da delação do ex-assessor de Jair Bolsonaro (PL-RJ) Mauro Cid.

Não por outro motivo, nesta semana, Fux teve parte de seu voto pelo recebimento da ação penal contra Bolsonaro reproduzido pelo próprio réu. O ex-presidente destacou três pontos que estariam presentes no voto de Fux:

“- A farsa da delação de Cid.

– PF, de orgulho à vexame.

– Fux desnuda A. Moraes.”

Reprodução de postagem de jair Bolsonaro (crédito: X)

A ideia da “farsa da delação de Cid” vai se montando ao longo do trecho destacado da decisão de Fux, que assim começa:

“Delação premiada é algo muito sério. Temos como jurisprudência que não podemos nem admitir a denúncia só com base em delação premiada.” 

De fato, além da jurisprudência, é a própria lei (nº 12.850, de 2 de agosto de 2013) que incluiu o insituto da delação premiada no ordenamento jurídico brasileiro quem traz a norma referida. Isso porque o delator é obrigatoriamente um criminoso confesso, que delata para obter vantagens no processo penal que responde pelos crimes que confessa na delação.

Assim, o delator não é testemunha, e o que ele diz não é prova. Servem apenas quando levam à chegada em provas. É o caso da delação de Mauro Cid. Em sua delação, ele contou que o ex-presidente chamou os comandantes das três Armas nacionais e os apresentou uma minuta de um golpe de estado, convidando-os a aderir. Dois não toparam e o outro topou, delatou Mauro Cid.

De posse deste depoimento, a Procuradoria-Geral da República (PGR) convocou os então comandantes das três Armas para depor e, por meio de suas oitivas, obteve as provas testemunhais de que, de fato, o então presidente efetivamente fizera o que fora delatado por seu ex-assessor.

Além disso, a PGR também foi atrás de obter os registros de entrada no palácio presidencial dos comandantes das três Armas para encontrar com Bolsonaro, obtendo assim uma prova documental da veracidade da delação de Mauro Cid.

Ainda assim, como mostra o vídeo postado pelo ex-presidente, o ministro Fux dá a entender que a delação de Cid é uma farsa. Assista abaixo.

Não parece o mesmo ministro que, ao longo de anos, defendeu a legalidade da condenação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na ação penal envolvendo um triplex no Guarujá (SP). Como se sabe, a condenação, que teve como exclusiva “prova” contra Lula o depoimento do empreiteiro Leo Pinheiro, foi posteriormente anulada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Foi anulada, mas não graças ao voto de Luiz Fux. Este não enxergou problema algum na delação servindo como único elemento de prova, sendo voto vencido em julgamento acerca do tema, junto com os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.

Na realidade, em 2022, o ministro Fux chegou a afirmar, inclusive, que a Operação Lava Jato só tinha tido sentenças anuladas por meras questões de forma.

Para Fux, formalidades levaram à anulação da Lava Jato (crédito: reprodução/UOL)

Pois bem. No mesmo trecho de voto destacado por Bolsonaro, o ministro afirma que:

“Nove delações representam nenhuma delação. A delação (de Mauro Cid) não pode ter validade, ela foi cada hora acrescentando uma novidade.”

Como se nota, o que agora diz Luiz Fux é que uma delação que tenha tido múltiplas versões, com pontos sendo adicionados na medida em que avançam as investigações, não pode ter validade.

Pois é a exatamente a multiplicidade de versões um dos pontos mais marcantes da delação do empreiteiro Leo Pinheiro contra Lula no caso do triplex.  Como se pode ver nas reproduções abaixo, a imprensa noticiou amplamente as idas e vindas de Leo Pinheiro em sua delação premiada.

A delação do empreiteiro Leo Pinheiro, utilizada como única “prova” do MPF contra Lula, foi construída para atender ao gosto dos procuradores de Curitiba (crédito: montagem/DCM)

Existe, porém, uma diferença fundamental entre as múltiplas versões de leo Pinheiro e de Mauro Cid. O ex-assessor de Bolsonaro foi adicionando informações à sua delação na medida em que as investigações avançavam e se descobria mais crimes envolvendo o então presidente e seu entorno. Cid ia confessando mais mais crimes na medida em que iam sendo descobertos. E, graças a essas confissões, se chegaram a provas a respeito desses crimes.

Já no caso de Leo Pinheiro, ele não adicionou novas provas ou eventos em quaisquer de suas múltiiplas versões. Tudo que fez foi ir incluindo trechos de conversas que ele teria tido com assessores de Lula (que não foram gravadas nem corroboradas por qualquer outra testemunha) que incriminavam o ex-presidente. Foi só quando os procuradores da Lava Jato ficaram satisfeitos que o acordo de delação foi assinado.

Ainda assim, a delação de Pinheiro foi legítima para Luiz Fux. Já a de Mauro Cid, pode conter probelmas.

Se, para Fux, a delação de Cid não pode ser aceita porque já foi apresentada em múltiplas versões – todas construídas espontaneamente por Cid e seu advogado – o que se poderia dizer sobre a delação do então gerente da Petrobrás Pedro Barusco, assinada com os procuradores da Lava Jato, primeiro, em 19 de novembro de 2014, e depois, em uma segunda versão, em 9 de março de 2015?

A primeira versão da delação de Pedro Barusco, de novembro de 2014 (crédito: MPF)
A segunda versão da delação de Pedro Barusco, de março de 2015 (crédito: MPF)

A principal diferença entre o caso da delação de Cid com o de Barusco é que o primeiro alterou as versões quando quis e da forma que quis, enquanto o segundo foi obrigado a alterar a sua pelos procuradores da Lava Jato, conforme revelou reportagem do DCM.

As mudanças entre uma versão e outra, na realidade, foram escritas pela equie do então procurador federal Deltan Dallagnol, conforme também apontou a reportagem deste veículo.

Diálogo por mensagens de celular entre procuradores ocorrido no dia 3 de janeiro de 2015 – e periciado pela Polícia Federal – evidencia que os operadores da Lava Jato estavam trabalhando no aditamento da delação de Barusco para que o PT fosse incluído no rol de acusados.

Os procuradores estavam construindo, de próprio punho, uma nova delação para Pedro. Conforme debatiam, eles analisavam os elementos disponíveis para incluir o Partido Progressista (PP) entre os entes que seriam beneficiados pelo esquema de corrupção que estariam instalado na Petrobras.

Em dado momento, Dallagnoll observa que há “falta de prova do pagamento” de propina ao PP. Os procuradores, então, passam a trabalhar com a hipótese de trabalhar com “provas diretas de valor relativo“, “prova indiciaria (sic)” e elementos de outras delações premiadas, como a de Alberto Yousseff (chamado apenas de “Y”) e a de Paulo Roberto Costa (identificado como “PRC”).

Dessa maneira, refletiam os procuradores, seria possível incluir em suas denúncias o Partido Progressista como entidade receptora de dinheiro ilegal.

Mas, ainda assim, não era bom o suficiente. Dallagnol diz ao colega: “Pensando aqui, tem o custo político de atacar o PP e não PT”. Eles resolvem, então, colocar na delação de Barusco que o PT também estava recebendo propina por meio de sua atuação junto a empreiteiros Tudo documentado pela Operação Spoofing, da Polícia Federal.

Para Dallagnol, era preciso reformar a delação de Pedro Barusco, para que se evitasse “o custo político” de “atacar” só o PP, e não o PT (crédito: Polícia Federal)

Nada disso, porém, fez com que o ministro Fux desabonasse juridicamente a delação de Pedro Barusco. Pelo contrário, na mesma ocasião em que afirmou que as sentenças da Lava Jato haviam sido anuladas por formalidades, ele enalteceu o processo e a delação de Pedro Barusco, enaltecendo o fato de o gerente, na delação, ter confessado que teria desviado R$ 89 milhões em contratos da Petrobras com empreiteiras. Sobre a delação ter sido confeccionada no gabinete de Dallagnol para incriminar Lula e sua evidente ilegalidade, nenhuma palavra.

Ao defender legalidade de delação escrita pela Lava Jato para Pedro Barusco, Fux deu munição a rivais de Lula, informou a Folha de S.Paulo (crédito: reprodução)
Adicionar aos favoritos o Link permanente.