- ALERTA DE GATILHO: esta reportagem contém relatos que podem ser considerados perturbadores para alguns leitores.
No dia 31 de março, o Ministério Público de Santa Catarina coordenou uma grande ação para fiscalizar o CRAD (Centro de Reabilitação Álcool e Drogas) de Timbó, situado no bairro Mulde Alta, no Morro Azul.
Diversas entidades participaram da força-tarefa, entre elas o Conselho Estadual de Entorpecentes, a Vigilância Sanitária, o Corpo de Bombeiros, o CAPS de Timbó, o Conselho Regional de Psicologia e representantes da assistência social.
A fiscalização gerou a interdição parcial da unidade pela Vigilância Sanitária “por não garantir a permanência voluntária das pessoas”, conforme consta no documento.
Na prática, a determinação foi para que as pessoas fossem liberadas e o CRAD ficou impedido de receber novos internos.
O Misturebas News apurou que a direção do centro foi orientada a entrar em contato com os familiares dos 38 internos que estavam no local para que fossem liberados, mas isso não aconteceu.
As pessoas teriam sido abandonadas nas ruas, muitas sob efeito de medicamentos, inclusive às margens da BR-470.
Onze homens buscaram ajuda no CAPS de Timbó e foram redirecionados para seus municípios.
O Misturebas News conversou com ex-internos que passaram pelo CRAD.
Todos foram internados à força, apesar da legislação brasileira só permitir que comunidades terapêuticas recebam pessoas voluntariamente.
Os relatos são de terror, tortura, suicídio, trabalho análogo à escravidão, humilhações, política do medo e desvalorização da vida humana.
Para preservar as identidades, criamos nomes fictícios.
Antes dos relatos, marcamos aqui dois pontos importantes da Constituição Federal (1988).
O primeiro são os fundamentos do Estado Brasileiro, sendo um deles a dignidade humana e outro o valor social do trabalho. Isso significa que o trabalho deve ser instrumento de emancipação e cidadania, nunca de exploração. Uma ferramenta para dar acesso a uma vida digna de ser vivida.
Já o Artigo 5º preconiza no inciso III que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e no inciso LIV “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
* Gustavo – 1 ano e 3 meses no CRAD
A equipe do CRAD buscou Gustavo em casa, a pedido da família.
Ele passou pela unidade em Indaial (que também foi interditada, no dia 31 de janeiro) e depois encaminhado para a Mulde, onde, segundo relato, era dopado e obrigado a trabalhar, principalmente, cuidando dos cavalos.

Eles falam para as famílias que nós estamos bem, andando a cavalo. Não existe isso, ninguém nunca andou a cavalo lá dentro. Era só trabalhar limpando cocheira, levando sacos de esterco […] A gente era xingado, humilhado, levava tapas, socos.
O que define o trabalho análogo à escravidão, segundo a lei (Artigo 149 do Código Penal Brasileiro), é a pessoa ser obrigada a trabalhar em jornada exaustiva, condições degradantes, sem alimentação adequada e impedida de deixar o local. Todas as características, segundo as denúncias, aconteciam no CRAD.
Gustavo tentou fugir, mas foi resgatado e punido.
Ele conta ainda que a comida servida no local vinha de um supermercado da região, dos restos que eram separados para descarte.
* Cláudio – 1 ano e 2 meses no CRAD
Cláudio conseguiu fugir do CRAD depois de um ano e dois meses de internação. Ficou escondido no meio do matagal e passou por várias cidades até que desistissem de procurar por ele.
Ele conta que também foi resgatado em casa (a irmã e o pai acionaram a comunidade terapêutica) e dopado já no carro, a caminho do centro.
Me enfiaram remédio goela abaixo, se não ia apanhar. Cheguei lá e passei três dias dormindo. Depois, me botaram para trabalhar no sol a base de remédios arrancando planta […], todo mundo babando do Haldol, um babando por cima do outro passando mal, tanto que muitos tentaram se matar, é um desespero total, muito triste.
Segundo Cláudio, os cavalos que eram mostrados às famílias com a promessa de ecoterapia eram utilizados em eventos de exposição.
Os internos seriam obrigados a cuidar dos animais e a trabalhar nos eventos, sem nenhum tipo de remuneração.
Ele denuncia ainda que se alguém passasse mal não recebia atendimento.
Podia estar morrendo, ninguém era levado para o médico. […] A gente não podia contar nada para as famílias, ninguém recebia visita, era apenas chamada em vídeo, cárcere privado mesmo. Uma pessoa ficava sempre do lado controlando o que a gente falava. […] O que mais me dava pena eram os velhinhos que estavam abandonados lá, há cinco, seis anos…
Cláudio diz que antes de ser internado tinha casa e carro, mas a direção da comunidade terapêutica teria aconselhado a família dele a vender tudo, para “recomeçasse do zero”.
Hoje, ele rompeu com a família, casou, trabalha e tenta refazer a vida.
* Jonas – 1 ano no CRAD
Jonas conta que foi levado amarrado e dopado para o centro. Ele também foi internado a pedido da família, mas diz que nunca usou drogas.
Me colocaram no trabalho forçado. Eram dezoito comprimidos por dia, de tarja preta, de ficar babando. Depois de trinta dias, eles me castigaram, me proibiram de dormir, me colocaram trancado dentro de um quarto e tinha que ficar escrevendo uma frase que mandaram […] Eu tentei me matar, fiquei seis dias em coma.

Assim como outros ex-internos, Jonas também diz que as pessoas que comandam o CRAD se portavam diferente na frente das famílias.
É aquela simpatia na frente das famílias, quando vira as costas, o tapa pega e já te chapa de remédios. Mijei na cama seis meses. […] Todo mundo sai com medo, depois de sofrer tanta violência.
Ele também confirma a proibição de visitas. Diz que as chamadas em vídeo com a família duravam cinco minutos e, se pedisse para ir embora, “o castigo pegava”.
Jonas também endossa a denúncia sobre a alimentação.
A gente pegava comida do lixo do mercado, carne podre, embalada o dia todo no sol, até estufada de dar aquele gás de início de decomposição. Era passado uma água e colocado no moedor de carne. Isso ia para as duas unidades, de Timbó e de Indaial. A de Timbó era 1,2kg para fazer um molho para 50 pessoas.
Ele também confirma a denúncia sobre os cavalos: “tem cerca de 40 cavalos lá, todos de exposição, não tem nenhum funcionário para cuidar, quem cuida são os internos. Cada interno carrega saco com quarenta, cinquenta quilos de esterco morro acima. É mão-de-obra escrava para conseguir lucro”.
E alerta:
A pessoa que vai para lá se tratar sai traumatizada. É a política do medo. Não tem como não dizer que aquilo não é um campo de concentração.
* Antônio – 9 meses no CRAD
Antônio foi internado pelo pai.
Ele diz que nos primeiros dois meses a medicação era tão forte que ele não conseguia falar, até comer era difícil, urinava na cama por não conseguir levantar.
O restante do tempo, segundo ele, foi trabalhando com os cavalos.
Nunca passei por nenhum médico, nenhum psiquiatra. Era obrigado a tirar capim para os cavalos e separar comida podre que vinha do mercado. […] Foi a pior época da minha vida, presenciei eles batendo em muita gente e usando uma máquina de choque.
* João – duas internações totalizando 2 anos e 3 meses
As duas internações de João foram involuntárias.
A primeira durou 1 ano e a segunda 15 meses. Na primeira o custo foi de R$ 2,5 mil por mês, ou seja, R$ 30 mil. Na segunda, segundo ele, foi cobrado cerca de R$ 3 mil por mês.
Trabalhava com os cavalos, sem segurança nenhuma, praticamente trabalho escravo mesmo, um penhasco, carregando 50 quilos de esterco no carrinho de mão. Apanhei muito, chute nas costelas, tapa na cara.
João chegou a ser mordido por um cavalo e diz que não recebeu atendimento médico.
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O CRAD continua sendo investigado pelo Ministério Público. O processo corre em segredo de Justiça.
A equipe do Misturebas News esteve no CRAD para ouvir a versão do proprietário Volnei Pereira. Clique aqui para acessar a matéria.
O post CRAD TIMBÓ: dopados, agredidos e escravizados; veja relatos de ex-internos apareceu primeiro em Misturebas News.