Livro retrata a bravura de Vó Geralda, símbolo da resistência feminina

Há dez anos, Vó Geralda recebe, na Fazendo Menino, visitantes que realizam a travessia inspirada em “Grande Sertão: Veredas”

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Será lançado neste sábado, dentro do Festival Artes e Vertentes, o livro “A Porta Aberta do Sertão – Histórias da Vó Geralda” (244 páginas, R$ 59,90). Chancelado pela Editora Relicário, a obra nasceu a partir de um processo de escuta e transcrição dos relatos de Geralda de Brito Oliveira, a Vó Geralda, uma senhora que, há 10 anos, recebe, na Fazenda Menino, os Caminhantes do Sertão. Ou seja, pessoas que realizam a travessia inspirada em “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. No caso, Isla Nakano e Renata Ribeiro são as caminhantes que se transformaram em interlocutoras de Vó Geralda e, do mesmo modo, coautoras do livro.

Vó Geralda vive no Noroeste de Minas, nas margens com Bahia e Goiás. Moradora da antiga sede da Fazenda Menino desde 1968, foi administradora da propriedade, bem como professora e parteira. Sua casa não tem televisão. A sala é cheia de camas e, em uma das paredes, o olhar do quadro de um boi
questiona a humanidade. O número de pessoas que passam por lá em apenas 24 horas é incontável. Todo ano, no mês de julho, mais de 80 caminhantes pousam uma noite única no quintal dessa senhora, a Vó Geralda, para ouvir as histórias de um recorte de sua vida.

Saberes ancestrais

Foi em 1968 que Geralda de Brito Oliveira chegou num carro de boi para dar aula no ciclo de alfabetização. Pouco depois, passou a administrar a propriedade. De acordo com o material de divulgação da Relicário, a narrativa de Vó Geralda se tornou a peça importante da história local. “No entremeio do sonho e do despertar, em que chás de galhos de mexerica cuidam da dor, suas memórias contam que pisar na terra ajuda a lidar com o impossível e que o sertão é definitivo”.

Geralda de Brito Oliveira, a Vó Geralda, à frente de Isla Nakano (de vestido) e Renata Ribeiro (Humberto Góes/Divulgação)

E prossegue: “A Fazenda Menino guarda histórias misteriosas: o grandioso projeto de ocupação e
desenvolvimento do Vale do Rio Urucuia, a cidade projetada por Niemeyer que não aconteceu, a perseguição a integrantes do PCB que pernoitavam ali, e a vida de uma professora da escola rural torturada apenas por estar na mesma casa…”

Cidade Marina

A região alimentou um dos projetos mais ambiciosos do país, mas que foi paralisado por
disputas de terra e sufocado pela ditadura militar a partir de 1964. Trata-se da construção de
Marina, cidade projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Datado de 1955, o projeto foi
encomendado pelo empresário Max Hermann – financiador e ligado ao PCB –, meses antes
do início da construção de Brasília. Hermann sonhava em construir uma cidade sustentável
para 200 mil habitantes no Vale do Urucuia para homenagear a mulher, Marina Ramona.

Marina teria “a calma e a segurança tão raras nas cidades modernas”, como define o próprio
Niemeyer no Memorial Descritivo da Cidade Marina. Entre outras particularidades, o projeto
previa o paisagismo de Roberto Burle Marx.

Resistência

A ligação de Hermann com o PCB desencadeou repressão, prisões e presença de militares
na Fazenda Menino. De 1970 a 1972, a fazenda passou a ser alvo dos militares, que
frequentemente invadiam a fazenda. Vó Geralda foi perseguida, separada dos filhos e
violentada apenas pelo fato de estar na mesma casa. Em 2017, ela depôs na Comissão da Verdade. Sua história aparece em um dos volumes da Comissão, sob o título “Dona Geralda resiste: a repressão na Fazenda Menino”.

A força da mulher sertaneja

Além das memórias desse período, as histórias da Vó Geralda perpassam temas como ancestralidade, infância, casamento forçado, tornar-se professora, saberes e curas locais, maternidade, religiões, manifestações culturais, emancipação de estruturas de aprisionamento de gênero, luta pela terra e envolvimento em movimentos populares. A porta aberta do sertão pode ser lido, ainda, como uma celebração à força das mulheres.

A bravura e a resiliência de Vó Geralda, símbolo da resistência feminina e da riqueza cultural do sertão, são fontes de inspiração e um convite para embarcarmos numa jornada
pelo coração do sertão.

Confira, a seguir, uma entrevista com as autoras. Em tempo: as duas elaboraram, em conjunto, as respostas.

Como (e quando) conheceram Vó Geralda e como surgiu a ideia do livro?

Conhecemos a Vó Geralda em 2019, durante a travessia d’O Caminho do Sertão – somos caminhantes. Ela recebe os andarilhos todos os anos, no quintal de sua casa, na segunda noite da travessia. Assim, montamos o acampamento em sua terra e, embaladas pelas luzes verdes da geodésica, vimos o caminhar das estrelas. Desse modo, tivemos contato com um recorte de sua história. Daí, o desejo de compreender, escutar e mergulhar nos saberes de Vó Geralda e nas histórias da região nos invadiu e abrimos duas frentes de pesquisa. A primeira, de história oral, buscava um registro audiovisual dela narrando as andanças de sua existência. A segunda, pesquisa histórica, começou a escavar os mistérios da região.

Durante esse processo conhecemos o Raul Sampaio com a ideia de gravar um documentário dela. Ao conversarmos sobre nossas propostas com Sandino e Paraka d’O Caminho do Sertão descobrimos que ela desejava um livro desde pequena. Para ela, um livro – objeto, corpo, história – sempre foi algo de valor inestimável, sabedoria eternizada. Vó Geralda queria demais um livro de suas histórias que ficasse para seus filhos, netos e bisnetos e quem mais se interessasse por tudo que lhe aconteceu. Foi assim que entramos nessa vereda.

Como foi o processo de feitura da obra?

Primeiro estudamos documentos, artigos, vídeos e muito mais sobre a história da região. Então, escutamos todos os materiais audiovisuais que nos foram disponibilizados. Desse modo, essa pesquisa inicial mostrou que a narrativa da Vó estava um pouco aprisionada nos horrores vividos por ela no período da ditadura militar. Em todas as entrevistas e gravações, ela contava a mesma história, portanto, não experimentava falar sobre outros momentos de sua existência. Veja, Vó Geralda está muito acostumada a dar depoimento para os caminhantes do sertão, bem como entrevistas para jornalistas e pesquisadores. Assim, a pergunta que fizemos foi: o que precisamos para sair desse espaço e andar por outros?

E como solucionaram esse impasse?

Como Vó Geralda não enxerga e já havia sinalizado um desconforto com outras pessoas que se propuseram a escrever seu livro, decidimos atuar com recursos que encostassem em algo muito profundo. Fizemos duas imersões em sua casa para receber suas sabedorias em forma de contação de histórias, os estudos de memória sensorial nos ajudaram muito. Tal qual, trabalhamos com uma caixa de cheiros depois de estudar o efeito do olfato na memória. E utilizamos objetos como uma escolinha de madeira, chocalhos, peteca, bonequinhas de pano entre outros.

Assim, aos poucos, Vó Geralda foi lembrando histórias mais remotas da infância. E se sentiu confortável por não ser um formato de entrevista/filmagem tradicional e, desse modo, conseguiu compor a narrativa que escreve o livro. Foram 14 dias de vivências, conversas e filmagens na Fazenda Menino adentrando o
sertão de aroeira da Vó Geralda.

Se tivessem que descrevê-la, usariam quais adjetivos?

Vó Geralda é a força e a sabedoria da terra da mulher sertaneja. Ela acredita na vida, nas pessoas. Da mesma forma, é resiliente, honesta e leal, não apenas com os seus, mas com o que pensa. Ela é o sertão, é descomunal. Brava, doce, gentil, sincera. Uma das características dela que mais nos impressionaram é capacidade de lidar com o imprevisível. Tombos da vida, tragédias e horrores, suas respostas existenciais têm sempre muita força. Ela sempre nos diz que, quando jovem, arrumava briga por tudo, e que hoje é
tranquila demais.

Ela ficou contente com a ideia do livro?

Então, a ideia do livro é dela. Assim, a obra é uma caminhada por seu desejo. E Vó Geralda ficou muito feliz com a publicação e circulação do livro. No lançamento em sua casa, ela disse que tinha três sonhos: ser mãe – ter uma família -, ser professora e ter um livro que contasse suas histórias. Como conseguiu realizar os três, agora, vai precisar sonhar mais, pensar num sonho novo.

Poderiam escolher uma história, em particular, para compartilharem?

Vamos à primeira. Havia um homem que a assediava. Assim, toda vez que passava em frente à casa de Vó Geralda, tarde da noite, parava o cavalo e tentava intimidá-la pela ausência de seu marido. Ele pedia água e o filho mais velho dela levava. Até que, um dia, ele a desafiou a receber um copo d’água apenas por suas mãos. “Eu não quero água da mão de menino, não”. Quando ele se aproximou, ela abriu apenas a janelinha da porta, apontou uma arma para ele e ameaçou atirar. O homem ainda tentou enfrentá-la, mas ela retrucou: “Antes d’ôce tirá sua arma já dei um tiro no mei de sua testa”.

E uma segunda: Quando os militares invadiram a casa dela, no final do processo a avisaram que era o dia
de ela morrer. Vó Geralda foi levada ao campo de pouso, caminhou muitos passos. Daí, pediram para ela entrar no meio do mato porque não podia ter “sangue de comunista” na via em que as pessoas passavam. Antes de atirarem, disseram que ela deveria pedir perdão a Deus e ao marido. E a resposta dela – veja, para homens armados, o dobro de tamanho dela – foi: “Eu não vou pedir perdão a Deus porque não fiz nada de errado. E nem a marido, porque, se tivesse marido capacitado, não tava nessa situação”.

Vó Geralda segue recebendo os caminhantes do sertão? Como isso funciona?

Sim, todo ano, O Caminho do Sertão acontece. Na segunda noite, os caminhantes montam suas barracas no quintal da casa dela, jantam e tomam banho por lá. Com os integrantes da produção, são mais de 100 pessoas que pernoitam em seu espaço. Depois de comerem, os caminhantes sentam na sala de Vó Geralda e escutam algumas de suas histórias. Ela está feliz porque agora também podem ler o livro.

Serviço

No sábado, 21/9, e domingo, 22/9, acontece o lançamento de “A Porta Aberta do Sertão: Histórias da Vó Geralda” (Relicário), pelo Festival Artes Vertentes, em Minas Gerais.

No sábado, Vó Geralda, Dona Liça Pataxoop e Isabela Nogueira se juntam para um bate-papo, às 10h, no no Iphan (Jardim).

Já no domingo, às 10h, no Sítio Serra Azul (Estradada Caixa D’Água da Esperança – KM 8, será realizado Café Literário com Vó Geralda na casa de Rosana Nascimento.

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