‘Hospício é Deus’, de Maura Lopes Cançado, é testemunho da loucura com olhar de mulher

hospicio é deus maura lopes cançado

 

hospicio é deus
Reedição da Companhia das Letras busca resgatar autora (Foto: Divulgação/Companhia das Letras)

A mineira Maura Lopes Cançado manteve um diário, entre o final dos anos 1950 e 1960, em que contava sobre suas internações em hospitais psiquiátricos brasileiros. Ela, que já tinha sido casada, foi mãe jovem e trabalhava em jornal, no livro “Hospício é Deus” também relembra sua infância em Patos de Minas, como filha de uma família rica e prestigiada, brincando com aviões de tamanho real, percebendo os lados castos e hipócritas da própria realidade. Mas tudo muda com a loucura: sem diagnóstico preciso, mas que a faz ser internada diversas vezes. E loucura que também vai sendo registrada pela escrita, nessa espécie de diário, livro de memórias e até romance criado pela escritora, que traz luz para questões tão importantes sobre saúde mental e direitos humanos, além de uma prosa que envolve. Mas Maura ficou esquecida do cânone da literatura brasileira depois de ter matado uma interna grávida estrangulada com um lençol. Agora, reeditada pela Companhia das Letras, volta à tona, com tudo de estarrecedor que tem em sua história.

 

A trajetória de Maura parte de uma menina privilegiada, que foi mimada pelos pais e teve quase tudo que queria. Desde cedo, no entanto, ela apresenta os primeiros sinais de problemas psíquicos, que eram ignorados pela família, mas que faziam com que fosse considerada uma menina difícil. Além da loucura, Maura também tinha desde cedo contra ela uma vontade de ir contra a norma: casou-se quando quis com alguém que não era de uma família do mesmo nível social que a dela e, para piorar, desquitou-se em uma época que só mulheres de vida fácil poderiam fazer isso. 

Também na escrita ela desnuda tudo: desde um desejo pelo então sogro até a vontade de seduzir seu médico, descrito por ela como quem a protege e a defende dentro da ala psiquiátrica. Além dos desejos proibidos, que a colocam longe de estar em uma posição apenas de vítima, em “Hospício é Deus” ela também descreve os olhares e perigos que seu corpo sofre, com médicos e os outros trabalhadores dos hospícios, e os lugares onde esse tratamento era ainda mais cruel. Sua escrita também se volta para os vínculos de sobrevivência entre as mulheres nesses espaços, além dos ciúmes e das desavenças por vezes violentas.

Toda a sua trajetória, é claro, é alterada pelas internações pelas quais vai passando. Na primeira vez ela vai por vontade própria, por entender que precisava. É acompanhada pela família, que também continua com ela nas seguintes. Com o tempo, no entanto, ela vai perdendo tudo: eles, seus amigos, a própria lucidez que se mantinha ao menos na escrita. Por vezes, suas reflexões se tornam vagas, ela não consegue concluir suas ideias, o leitor fica perdido. Em seguida, então, é arrebatado de novo, quando ela consegue unir forças para contar e faz isso com um olhar único. Mais tarde, no entanto, mesmo essa habilidade seria perdida. Maura Lopes Cançado tenta até o final da vida, mas não consegue voltar a escrever.

Escrita com loucura

Em uma escrita totalmente autobiográfica e que se propõe a falar sobre a loucura tão diretamente com o leitor, seria possível ou desejável separar o autor da obra? Um questionamento igualmente conflitante é se, nesse caso, seria possível mesmo ver toda a beleza e lucidez que a autora traz em suas palavras, mesmo sabendo o que faz, em seguida, ou os comportamentos moralmente questionáveis que narra sem constrangimento. Será que tem como separar essa loucura de uma perspectiva feminina, de um aprisionamento mais amplo que é direcionado às mulheres que também enlouquecem? Ou tudo isso compõe uma coisa só, que o leitor deve tentar entender, em uma leitura que também desafia preconceitos? Também devemos, como um louco, suspender ideais preconcebidas?

É interessante como, na escrita, Maura também parece expor – e até denunciar – o tratamento que recebe. A delicadeza com que faz isso comove: percebe bem as palavras que direcionam a ela, o tratamento sub humano que passa a ter, quando percebe também que a loucura é só mais um dos aspectos humanos que tem. “Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. (…) Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades — em excesso de liberdade.”

‘Os loucos parecem eternos’

Por vezes fala dos loucos se incluindo, por vezes fala deles distantes – escreve com compaixão sobre outras internas, enquanto em relação a si mesma, sente pena, mas por vezes também raiva. Não entende porque não consegue ser de outra forma: planeja a vida sem a loucura, imagina como a tratariam, idealiza a própria realidade para acreditar que em algum momento ela vai melhorar, mesmo sem saber exatamente do quê. “Os loucos parecem eternos”, em suas próprias palavras, e é justamente isso que mais assusta.

E também é isso que vira seu tema, em primeira pessoa, em uma perspectiva muito difícil de encontrar e que, mesmo se não fosse tão rara, contém algo único, de uma verdadeira escritora, que merece ser lida e relida. A literatura, esse ser estranho, também eterniza.

O post ‘Hospício é Deus’, de Maura Lopes Cançado, é testemunho da loucura com olhar de mulher apareceu primeiro em Tribuna de Minas.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.