“Justiça fiscal”: especialista brasileiro defende taxação de ricos em evento no Vaticano

Audiência do Papa Francisco na Pontifícia Academia das Ciências Sociais (Vatican Media)

Nesta quinta-feira (13), a Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano e a Comissão Independente para a Reforma da Tributação Corporativa Internacional promovem o evento de alto nível “Justiça Fiscal e Solidariedade”.

Entre os participantes está o vice-presidente de Programas da Open Society Foundations, Pedro Abramovay, que coordena o painel “Propostas e Oportunidades para um Sistema Tributário Internacional Justo”, que conversou com a RFI sobre o assunto.

Criado há um século pelos países ricos, o sistema tributário internacional, concebido em um mundo não globalizado, e vem enfrentando uma imensa pressão, graças à intensificação da competição fiscal, à digitalização, ao sigilo financeiro e aos paraísos fiscais.

“Tudo isso se traduz em bilhões de dólares perdidos anualmente devido ao abuso fiscal, especialmente em países em desenvolvimento que necessitam urgentemente de receitas significativas para financiar serviços públicos, adaptação às mudanças climáticas e a transição verde”, diz o documento que apresenta o evento de alto nível no Vaticano, que contou com a participação de um vídeo gravado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

“A democracia vive hoje seu momento mais crítico desde a Segunda Guerra Mundial, a desigualdade entre ricos e pobres aumentou de maneira expressiva”, disse Lula na abertura de seu discurso, enfatizando que “os superricos pagam proporcionalmente muito menos imposto do que a classe trabalhadora”.

Ele subinhou ainda que “o Brasil tem investido no tema da cooperação internacional para desenvolver padrões mínimos de tributação global, fortalecendo as iniciativas existentes, incluindo os bilionários”. “Com a presidência dos Brics, da Cop 30 neste ano, o Brasil quer propor uma nova arquitetura, de financiamento climático”, destacou Lula durante o evento no Vaticano.

O fator Trump e o sistema tributário global

Em meio às rupturas na ordem mundial [impostas por Donald Trump, por exemplo], ainda é possível sonhar com um sistema tributário global mais equitativo? O advogado Pedro Abramovay acredita que “não temos outra opção”.

“Justamente em momentos como este, em que vemos ataques ao Estado, liderados por figuras como o ex-presidente dos Estados Unidos, é que precisamos reforçar a ideia de que não há como enfrentar problemas globais – pandemias, desigualdade, mudanças climáticas – sem Estados fortes.

Especialmente fora do Norte Global, onde a redução de ajuda e cooperação internacional exige que os países desenvolvam capacidade própria de reação. E isso só acontece com o fortalecimento da capacidade fiscal, o que depende de um sistema tributário internacional mais justo”, afirma.

“Chegamos perto do primeiro trilionário”

Sobre as tendências de desigualdade, o vice-presidente de Programas da Open Society Foundations destacou a crescente concentração de renda global, impulsionada pelo aumento do número de bilionários.

“Chegamos perto do primeiro trilionário no mundo. É claro que há incentivos econômicos que promovem essa concentração, mas o sistema tributário é um dos maiores culpados. Hoje, bilionários pagam em média apenas 0,5% de imposto de renda, enquanto trabalhadores pagam muito mais. Enquanto mantivermos um sistema tão injusto, a concentração de riqueza continuará. Precisamos de uma reforma tributária global para reduzir desigualdades, aumentar a arrecadação e fortalecer a capacidade dos Estados de proporcionar bem-estar à população”, diz Abramovay.

Papel “central” do Brasil no cenário global

O papel do Brasil foi destacado no evento, especialmente no contexto da presidência do G20. “O Brasil desempenhou um papel fundamental ao liderar o G20, que, pela primeira vez desde a invasão russa na Ucrânia, conseguiu uma declaração assinada por todos os países.

Além disso, o Brasil utiliza essa liderança para avançar em pautas progressistas, como justiça tributária e mudanças climáticas. É um dos poucos países com capacidade de dialogar com diversas nações – China, Rússia, Estados Unidos, África e países árabes – e propor agendas concretas para uma ordem mundial mais justa”, acredita Abramovay.

Evasão fiscal “tóxica” das corporações multinacionais

A evasão fiscal por corporações multinacionais foi apontada como um dos aspectos mais tóxicos da globalização.

“A evasão fiscal drena cerca de um trilhão de dólares para paraísos fiscais todos os anos. Enfrentar isso só é possível com cooperação global. Apesar de pouca esperança nos Estados Unidos durante a gestão Trump, observamos maior comprometimento da União Europeia, países africanos e latino-americanos, além de uma entrada mais recente da China no tema. É preciso um esforço coordenado para fechar esses gargalos”, sublinha.

Desafios de uma reforma tributária global

Abramovay também destacou os desafios para modernizar um sistema tributário internacional criado há mais de um século, num mundo ainda não globalizado. “O sistema atual foi concebido numa época em que as transações eram feitas em papel e confiavam na troca limitada de informações entre países.

Hoje, a tecnologia permite transferências rápidas e eficientes, tornando possível criar um imposto global único, compensado automaticamente entre nações. Precisamos atualizar o sistema para o século 21, aproveitando essas ferramentas para criar maior justiça tributária.”

Riscos para a democracia e o papel da justiça tributária

Encerrando a entrevista, Pedro Abramovay alertou sobre a relação entre a injustiça tributária e os riscos à democracia. “Num mundo em que o Estado é atacado por forças autoritárias, é crucial reforçá-lo – não de forma repressiva, mas como promotor de bem-estar social.

Estados incapazes de reduzir desigualdades e atender às demandas dos cidadãos perdem legitimidade, abrindo espaço para aventureiros autoritários. A justiça tributária é essencial para fortalecer a democracia, e eventos como o do Vaticano reúnem mentes brilhantes para mostrar que é possível construir um mundo mais justo, mesmo diante de tantos desafios”, concluiu.

Publicado originalmente na RFI

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