Ao fugirem da violência doméstica, mães brasileiras são acusadas de sequestro dos próprios filhos

Mulheres brasileiras são vítimas de violência doméstica em Portugal e, várias vezes, afastadas dos filhos – Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Por Maíra Streit, em Público Brasil

Foram anos de denúncias, que se acumulavam sem afastar o agressor. Ligar para a polícia já era parte da rotina de Tatiana*, que aprendeu a conviver com o medo. Depois de ter sido vítima de uma tentativa de homicídio pelo namorado em Portugal, enquanto segurava o bebê no colo, não quis esperar pelo pior. Desistiu de pedir ajuda e passou a pensar em como salvar a própria vida. Assumiu o perigo de ser processada e retornou ao Brasil com a criança, sem autorização do genitor. “É muito difícil. É como se dissessem para a mulher: ‘fique aí sendo abusada, maltratada, com risco até de morrer porque, se voltar, o seu filho vai ser repatriado’”, lamenta.

Hoje, Tatiana tenta reconstruir a sua história. Mesmo sabendo que, a qualquer momento, pode ser denunciada, ela afirma que ficar onde estava já não era possível. “A técnica da CPCJ (Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, órgão oficial responsável por defender os direitos infanto-juvenis) disse que era errado eu afastar o filho de um bom pai. Bom pai? Ele tentou esfaquear a gente”, protesta. Situações assim estão no centro de uma discussão sobre como a atual interpretação da Convenção de Haia tem se tornado uma armadilha para mulheres que sofrem violência doméstica.

O tratado, do qual Brasil e Portugal fazem parte, regula uma série de questões do direito internacional. Entre elas, estabelece o retorno imediato de crianças e adolescentes levados de um país para outro sem o consentimento de um dos responsáveis. Essa determinação tem feito com que estrangeiras sejam condenadas por tentarem fugir com os filhos à procura de refúgio. Por diversas vezes, eles são entregues ao agressor após a mãe perder a guarda e passar da condição de vítima para o banco dos réus, acusada de sequestro.

Portugal é destaque em casos de subtração de menores

Dados de 2023 do Ministério das Relações Exteriores (MRE), disponíveis no Mapa Nacional da Violência de Gênero, iniciativa do Senado Federal, Instituto Avon e Gênero e Número, apontam que o país ocupa o topo do ranking no número de cidadãs brasileiras residentes no exterior que buscaram a rede consular para auxílio em episódios de subtração de menores. Em relação às disputas de guarda, o país ocupa o segundo lugar, muito próximo da Alemanha, que aparece em primeiro.

Naquele ano, mais de 1.500 brasileiras recorreram aos consulados para fugir da violência de gênero nos países onde residiam. Portugal mantém o quarto lugar no número total de ocorrências — atrás da Itália, Estados Unidos e Reino Unido. Porém, destaca-se nas denúncias de violência vicária, quando os agressores utilizam outras pessoas, frequentemente os filhos, para atingir a vítima. É comum ocorrer em relações abusivas após separações, situação em que as crianças são usadas como ferramentas de manipulação para punir ou controlar a mãe.

Registros do MRE obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram que, em 2022, foram recebidas 118 notificações de violência de gênero nos três consulados do Brasil em Portugal, nas cidades de Lisboa, Porto e Faro. Em 2023, foram 127.

Haia: proteção ou punição?

De acordo com o levantamento da organização não-governamental Revibra Europa (Rede de Apoio às Vítimas Brasileiras de Violência Doméstica), a entidade atendeu 278 casos, de 2019 a 2022, que envolviam a aplicação da Convenção de Haia. Embora a instituição também receba demandas do público masculino, 277 dos pedidos de auxílio foram feitos por mães brasileiras, sendo 273 já denunciadas ou em vias de serem acusadas de rapto.

Das solicitações analisadas, em 249 existiam relatos de violência doméstica. No entanto, as informações mostram que este fato nem sempre é considerado. Entre os 52 processos judiciais sobre Haia apoiados neste período, em 33 as crianças foram retornadas à casa do abusador e desprovidas de qualquer contato com a mãe, mesmo com menções de violência física, sexual e psicológica contra a mulher e os filhos.

Janaína Albuquerque, colaboradora da Revibra, defende que a Convenção — criada em 1980 — mantém regras ultrapassadas, que refletiam o pensamento da altura, mas não acompanharam a evolução da sociedade. “Ela é muito antiga. Na época em que foi elaborada, ninguém estava preocupado com violência doméstica”, observa.

Nos últimos 45 anos, houve avanços significativos na valorização dos direitos das mulheres e crianças, que não estariam a ser reconhecidos e, por isso, esta parte do tratado é considerada antiquada. Sem levar em conta o contexto familiar, em vez de proteção, há a penalização de mães que abandonam o lar por não considerá-lo mais um lugar seguro.

Além deste fato, a advogada, que trabalha com o tema em Portugal, afirma que as imigrantes dificilmente têm um tratamento igualitário quando enfrentam ações judiciais contra cônjuges que são nativos do país. Para ela, o preconceito acaba por influenciar o resultado nos tribunais, o que favorece a permanência da criança com o pai, mesmo que haja um histórico de abuso.

Janaína Albuquerque defende a revisão da Convenção de Haia para proteção das mulheres – Foto: Vinicius Loures / Câmara dos Deputados

A profissional alerta para a importância de a vítima estar bem assessorada em todas as etapas, inclusive, ao registrar a denúncia na delegacia sobre as agressões. “Essas mulheres estão em uma posição de desvantagem desde o princípio. A leitura do sistema em relação às brasileiras é bastante discriminatória”, pontua.

Condenada à prisão por fugir com a filha

Gabriela* diz que viveu isso na prática. Na semana em que concedeu entrevista, ela esteve em greve de fome como forma de protesto. Porém, o ato não surtiu efeito, nem evitou a sua sentença: foi condenada a quatro meses de prisão por subtração de menores, além do pagamento de uma indenização de 1.500 euros ao ex-marido. Ela ainda pode recorrer à decisão e promete não desistir de provar inocência no processo que teve início em 2021, quando fugiu com a filha na tentativa de dar um basta à violência.

Ela relata que o antigo companheiro mantinha um comportamento hostil e a atacava com chutes, socos e puxões de cabelo dentro de casa. As atitudes também atingiam a menina, que chegou a ser amarrada em uma cadeira quando, um dia, se recusou a comer. Os crimes, conforme conta, ficaram impunes. Na época, não denunciou por medo de retaliações. O agressor, como ela, é brasileiro, mas filho de portugueses e com uma boa situação financeira.

Hoje, Gabriela tenta ajudar outras mães que enfrentam o mesmo problema e ressalta a necessidade de reunir o máximo possível de documentos, fotos, gravações e testemunhas que confirmem os atos abusivos. Também sugere que procurem apoio psicológico. “Eles vão nos declarar como loucas. A estratégia é sempre essa”, afirma. Desqualificar as mulheres, segundo ela, é uma maneira de enfraquecê-las. “Na primeira audiência, tentaram me associar à prostituição. Diziam que eu era massagista e trabalhava muitas vezes à noite. O juiz exigiu que eu explicasse que tipo de massagens eu fazia”, recorda. “Não era nada disso. Sou formada em Medicina Chinesa. Faço acumpultura e me especializei no tratamento de doenças neurodegenerativas”, completa.

Por causa da Convenção de Haia, nunca considerou voltar ao Brasil com a filha. Sente-se presa à Europa. Ainda que tenha decidido ficar em Portugal para lutar pela guarda, há quase quatro anos não convive com a menina, que foi devolvida ao pai. Apesar de tudo, mantém a esperança. “Eu já não tenho mais lágrimas. Chorei tudo que tinha para chorar. Eu engoli a minha dor, mas ainda acredito na Justiça. Tenho que acreditar”, conclui.

Preconceito reforça os abusos

“Os estereótipos da mulher brasileira e a violência por parceiro íntimo” foi o tema da dissertação de mestrado da psicóloga Mariana Braz, que vive em Portugal há sete anos. Ela revela um estigma que teve origem no passado colonial, mas que ainda persiste e é especialmente prejudicial para mulheres negras e indígenas. “O estereótipo hiperssexualizado vem sendo reinventado até hoje com o propósito de continuar justificando e perpetuando uma série de violências contra nós”, afirma.

Para Mariana, há ainda diversos fatores que colocam as imigrantes em um contexto de grande vulnerabilidade, como a falta de uma rede de apoio, a dificuldade de acesso às informações sobre os seus direitos e a desconfiança em relação ao amparo das autoridades e instituições. Ela destaca que essas circunstâncias desmotivam a denúncia e fazem com que muitos agressores nunca sejam responsabilizados.

Com o objetivo de alertar para a gravidade do problema, em 2020 criou o perfil @brasileirasnaosecalam. Inicialmente, a ideia era reunir depoimentos e troca de experiências entre as seguidoras, que já são mais de 50 mil no Instagram. No entanto, o projeto foi além e atualmente conta com um grupo de apoio online e gratuito, consultas psicológicas a preços sociais e também um podcast que recebe profissionais para tirar dúvidas sobre direitos e serviços de assistência disponíveis no país.

“Só voltas ao Brasil num caixão”

Essa é uma realidade que, infelizmente, Cátia* conhece bem. Natural do Ceará, no nordeste brasileiro, foi apresentada ao ex-companheiro por uma amiga e, depois de um tempo viajando entre Portugal e Brasil, o casal resolveu viver no país europeu, de onde ele vinha. Isolada e longe das pessoas de confiança, percebeu que a relação já não era mais a mesma.

Havia muitas críticas e comentários depreciativos, que preferiu relevar no começo, mas tomaram graves proporções. As humilhações passaram a ser constantes. Bastava o marido não gostar da refeição para que os pratos fossem atirados à parede e, algumas vezes, a comida era jogada nela. “Sofria agressões físicas, ameaças. Dizia que eu só voltaria ao Brasil num caixão. Eram chutes, enforcamentos e o meu filho via tudo. Ele falava: ‘mãe, achei que você ia morrer’”, recorda com a voz embargada.

Com a ajuda da patroa, fez a denúncia e conseguiu sair de casa. Como é comum nesses casos, foi acusada de sequestro do próprio filho, mas conseguiu reverter a decisão e foi morar com a criança num abrigo. Porém, o sonho de estar com os parentes que não vê há anos está fora de cogitação. O menino não tem autorização para deixar Portugal.

Embora sinta falta da proteção da família, Cátia* se vê obrigada a morar perto do homem que tanto a machucou. Por determinação da Justiça, o filho ainda encontra o pai de 15 em 15 dias. Ela era sempre induzida a fazer acordos e o processo por violência acabou arquivado. “Nas audiências, eu ouvia: ‘se era tão ruim, por que casou? Por que teve filho com ele? Por que veio para cá?’”, lembra. Além dos traumas, a sensação que fica, segundo ela, é de impotência.

Em nota, a assessoria do Ministério da Justiça português afirmou que são conferidos às mulheres migrantes os mesmos direitos dos demais cidadãos. Contudo, a depender do contexto do processo-crime, elas podem ser enquadradas no estatuto de vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 20.º da Lei n.º 130/2015, que conta com medidas adicionais de proteção.

Consulado promete atenção ao tema

De acordo com o cônsul-geral do Brasil em Lisboa, Alessandro Candeas, o setor de assistência a brasileiros realiza cerca de 200 atendimentos por mês. O departamento oferece orientação jurídica, psicológica, apoio para a emissão de documentos e, no caso de vítimas de relacionamentos abusivos, encaminhamento para autoridades competentes.

Cônsul-geral do Brasil em Lisboa, Alessandro Candeas diz que, em média, 200 pessoas procuram ajuda do consulado todos os meses Vinícius Loures / Câmara dos Deputados

Candeas faz questão de ressaltar que o suporte será dado independentemente da situação migratória — regularizada ou não — e que não cabe ao consulado esse tipo de fiscalização. Para ele, o mais importante é garantir o acolhimento, embora admita a dificuldade de resposta a um número cada vez maior de pedidos de ajuda.

“Temos enfrentado desafios, dadas as condições atuais de estrutura e pessoal, para atender à crescente demanda da numerosa comunidade brasileira. Caso dispusesse de maior orçamento e equipe, o consulado poderia ampliar o seu atendimento, que já se encontra no limite”, afirma.

O cônsul lembra que está prevista para março de 2025 a inauguração do Espaço da Mulher Brasileira (EMuB) na repartição em Lisboa. Além dos serviços referidos, haverá a promoção de palestras sobre saúde, educação, direitos e empreendedorismo, para incentivar a independência financeira. A iniciativa já existe em outros consulados, a exemplo das cidades de Londres, Nova York, Miami, Boston, Roma e Buenos Aires.

Brasil debate novos caminhos

Atualmente, está em tramitação no Parlamento brasileiro o Projeto de Lei 565/2022, já aprovado pela Câmara e à espera de análise no Senado. A medida defende que a violência direcionada à mãe seja também considerada uma violência contra os filhos. De acordo com o texto apresentado, o fato de estarem expostos a graves riscos físicos e psicológicos seria motivo suficiente para negar a devolução deles ao país de residência, garantindo segurança para que permaneçam em solo brasileiro.

No Supremo Tribunal Federal (STF), há perspectivas de mudança com as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), que são mecanismos usados para contestar leis ou atos normativos que contrariem a Constituição Federal. Neste momento, há duas que discutem o tema: as ADIs 4245 e 7686, sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.

Elas pedem que a Convenção de Haia seja interpretada à luz dos princípios constitucionais brasileiros, incluindo o princípio da proteção integral da criança e o dever do Estado de coibir a violência no âmbito das relações familiares. A data para julgamento ainda não foi definida, mas grupos organizados da sociedade civil têm feito pressão para que o assunto não seja esquecido.

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