A narradora de “Leme” relembra uma cena de infância no colégio, aos doze anos. Nas aulas de língua portuguesa, os alunos estudavam um poema de Fernando Pessoa, cujos versos de abertura eram “O Monstrengo que está no fim do mar/ Na noite de breu ergueu-se a voar.” Escolhida para uma apresentação, a garota deveria decorar o poema para recitá-lo frente à platéia. Tremendo, abandonou o auditório sem conseguir fazê-lo. O tal Monstrengo dos versos de Pessoa, com sua voz e dimensão assustadora, lembrava demasiado o seu padrasto, Paulo. “Lembro de chorar de vergonha. E de sentir que não conseguia enfrentar o Monstrengo”. “Leme” é o livro de estreia da portuguesa Madalena Sá Fernandes, lançamento da Todavia Livros.
O romance tem início no funeral do padrasto. O que poderia ser visto como uma espécie de libertação, não causa o alívio esperado, ainda que, tantas vezes durante a infância, a narradora tenha desejado a morte do homem. Vê-lo morto parecia a única forma de se ver livre ao lado da mãe. Metódico e irascível, Paulo era um estopim sempre prestes a explodir. E ele sempre explodia. Uma crescente de agressões, tanto verbais quanto físicas, transforma o ambiente doméstico numa sinfonia do horror.
Brutal e sensível
Pelo olhar de uma criança obrigada a amadurecer antes do tempo, Madalena Sá Fernandes constrói um texto que caminha entre a brutalidade do mundo dos homens e a sensibilidade da poesia. A escrita aqui é uma forma de se libertar do passado, entregar à página o peso carregado por toda uma existência. “Nunca quis escrever um livro sobre violência doméstica. Preferia escrever uma ficção onde não existisse nenhum tipo de brutalidade”, ela nos diz.
Retrato genuíno e denúncia da violência doméstica e de um relacionamento profundamente tóxico, “Leme” lida com as contradições do afeto. Evitando uma visão maniqueísta acerca do padrasto, a narradora enfrenta a ambivalência dos próprios sentimentos frente ao homem. “Era cruel, mas carismático”, ela nos diz, capaz tanto de atrocidades, quanto de inesperadas gentilezas. No comportamento da mãe — e a crença de que, após uma explosão de fúria e um subsequente pedido de desculpas, as coisas melhorariam — ela se vê, no futuro, adulta, presa em uma repetição de padrões em um relacionamento amoroso. “Duvidei seriamente de que houvesse salvação. Não compreendi que podia escolher. Senti que essa capacidade me tinha sido roubada.”
“Leme” é uma estreia de fôlego, com capítulos curtos que carregam muito mais do que a página parece registrar. Madalena Sá Fernandes reconfigura o trauma numa jóia literária, mergulhando nas águas turvas de uma infância à deriva num mar tempestuoso e violento. Assim como a peça de embarcação com a qual compartilha o nome, “Leme” é uma (re)tomada de controle. No caso, o controle da própria história.
Gabriel Pinheiro é jornalista e crítico de literatura. Escreve aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)

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