Novo trabalho da autora nigeriana, A contagem dos sonhos é mergulho vivaz na existência feminina negra por meio de quatro personagens
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
“Tão visceral, tão profunda foi a maré de lembrança, arrependimento, perda e saudade do que poderia ter sido.”
Você já parou pra pensar em quantos sonhos deixou pra trás? Seja de maneira consciente ou inconsciente, quatro personagens lidam com o próprios anseios e expectativas, projetos abandonados e rotas recalculadas em “A contagem dos sonhos”. Novo trabalho de Chimamanda Ngozi Adichie, aguardado romance da autora nigeriana, sucessor de “Americanah”, publicado há mais de uma década. Com tradução de Julia Romeu, o lançamento da Companhia das Letras chega em edição especial para os assinantes do clube TAG Inéditos.
Um retrato vivaz da existência feminina negra
Unindo toda a potência da ficção para se debruçar sobre questões reais e presentes no nosso tempo. Chimamanda Ngozi Adichie entrega, já adianto, um romance poderoso. Acompanhamos em detalhe períodos importantes – ou mesmo definidores – nas existências de quatro mulheres, ligadas por laços de sangue ou, sobretudo, de fraternidade. Entre a América e a África Ocidental, este grupo rico e multifacetado de personagens retrata de maneira vivaz a existência enquanto mulher negra na sociedade contemporânea nos dois lados do Atlântico.
Para uma das mulheres, o passaporte nigeriano é, dependendo do país de destino, um entrave para a realização do sonho de publicar em livro os relatos de suas viagens – ainda que venha de uma abastada família no país africano. Para outra, os Estados Unidos se apresentaram como possibilidade de retomada da própria história, mas um acontecimento trágico a coloca em contato com um lado mais injusto da própria justiça. Com o nascimento do filho, após ser deixada pelo pai da criança, uma das personagens reinterpreta sob nova luz e matizes o relacionamento fraturado com a própria mãe. Já outra se vê cada vez mais engolida pelo mercado financeiro, suas armadilhas e seu poder mediado por um dinheiro, aparentemente, ilimitado.
“Darnell esmagava meus menores prazeres um a um e eu o ajudava a achatá-los, me afundando nas fendas mesquinhas de sua vontade. (…) Ah, se conseguíssemos ver nossas falhas enquanto estamos falhando”.
A masculinidade tóxica – quando não violenta, tanto em discurso quanto de maneira física – perpassa cada uma das histórias aqui contadas e interconectadas. Manipulação, silenciamento, assédio e estupro marcam tanto relações interpessoais e amorosas, quanto profissionais.
“Ela nunca parece chocada ou surpresa, e Kadiatou sabe que é porque já ouviu essa história muitas vezes: em formatos diferentes e de mulheres de todos os tipos, mas a mesma história no final das contas.”
Relações marcadas pelo afeto e pelo poder
Chimamanda desenha personagens que parecem saltar das páginas do romance, tamanha a nitidez de seus traços. Profundamente humanas, cada mulher aqui lida com os próprios demônios no eterno exercício de escritura e reescritura de si. Cada personagem tem um longo capítulo dedicado para si, ainda que repleto de intercessões entre um e outro. Acontecimentos apresentados em um momento podem ser reencontrados, sob novas perspectivas, em um ponto vindouro da narrativa.
No desenvolvimento das relações entre as quatro protagonistas – relações essas marcadas tanto pelo afeto, quanto pelo poder – Chimamanda Ngozi Adichie mira a sororidade com um olhar sensível e atento. Gênero, imigração, raça, sexualidade, maternidade, solidão e empoderamento feminino são apenas alguns dos temas marcantes de “A contagem dos sonhos”, forte candidato a grande romance deste ano. Valeu a espera.
Gabriel Pinheiro é jornalista e crítico de literatura. Escreve aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)
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