Anistia já … pro Adélio! Por Edward Magro

Adélio Bispo cumpre internação após ser considerado inimputável pela tentativa de matar Bolsonaro. Foto : Reprodução

Em matéria publicada pelo DCM, soube que Adélio Bispo de Oliveira continuará detido na Penitenciária Federal de Campo Grande (MS) até, no mínimo, 2038 — ainda que a história política recente do Brasil seja entretecida por coincidências demasiadamente oportunas para serem apenas isso: coincidências.

Adélio Bispo, condenado a décadas de prisão por um gesto que alterou os rumos de uma eleição, tornou-se hoje um nome relegado ao esquecimento, embora tenha sido peça central no tabuleiro que conduziu Jair Bolsonaro ao poder. Enquanto outros, também partícipes dessa caminhada, colhem os frutos de suas ações — uns doces, outros amargamente amargos —, Adélio apodrece no anonimato de uma cela. Há nisso uma ironia cruel, pois, em termos estritamente práticos, nenhum deles serviu tão bem ao bolsonarismo quanto ele.

A facada em Bolsonaro, desferida em plena campanha eleitoral, foi celebrada por seus apoiadores como uma epifania política e tachada de farsa por seus críticos. Cético por vocação, resisto à tese da encenação — não por qualquer fé na palavra do então candidato, cuja relação com a verdade sempre foi, digamos, maleável —, mas por respeito à reputação do cirurgião Antônio Luiz Macedo, que o atendeu. Médicos, mesmo quando ideologicamente inflamados, costumam ainda levar a sério o bisturi. O que não significa, evidentemente, que o episódio tenha sido apenas o que aparentou ser.

O ex-presidente Jair Bolsonaro levou uma facada durante a campanha eleitoral em 2018. Foto: Raysa Leite/AFP

Naquele momento, as pesquisas indicavam Fernando Haddad em ascensão, e o bolsonarismo — até então mais barulhento do que sólido — vislumbrava seu primeiro grande tropeço eleitoral. A facada mudou tudo. Transfigurou um candidato rejeitado por metade do eleitorado em mártir, em vítima de um suposto complô. A narrativa encaixava-se com perfeição: o “homem perseguido pela esquerda sanguinária”, o “escolhido que sobreviveu para salvar o Brasil”. A campanha, até então oscilando entre o beligerante e o inexpressivo, ganhou um impulso decisivo. Adélio, voluntário ou não, entregou a Bolsonaro o que nenhum marqueteiro, por mais genial que fosse, conseguiria fabricar: pintou a tela do “martírio do messias esfaqueado” — pintura asquerosa, amplamente utilizada, da maneira mais sórdida possível, como arma eleitoral. Além disso, Adélio forneceu a desculpa mais usada por Bolsonaro desde então: basta o sujeito ter algum problema com a Justiça que ele corre para o hospital mais próximo. Hoje mesmo, Bolsonaro encontra-se homiziado em uma UTI, “incomunicável”, enquanto um oficial de Justiça faz plantão na recepção do hospital para entregar-lhe a notificação do STF, comunicando ao ex-presidente que ele agora é réu.

Mas Adélio não agiu sozinho. Antes dele, dois outros cavalheiros prepararam o terreno. O general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, brindou a nação com uma nota pública em tom de ameaça velada, sugerindo que as Forças Armadas não assistiriam impassíveis a uma eventual candidatura de Lula. Um recado claro às instituições — ou, como diriam os estrategistas militares, um “lembrete dissuasório” de que certos limites não deveriam ser ultrapassados. Hoje, confinado ao silêncio de uma cadeira de rodas, assistido por respiração artificial, Villas Bôas recebeu os mimos usuais reservados aos fiéis servidores de causas convenientes — as tais sinecuras —, que, no caso específico, se traduziram em cargos para familiares no governo bolsonarista. Nada mal para quem já tem garantida uma polpuda aposentadoria militar, que será repassada de mãe para filha por longo tempo.

O segundo foi Sérgio Moro, que fraudou a Justiça para retirar Lula da corrida presidencial. As manipulações processuais da quadrilha lavajatista, fartamente documentadas pela Operação Spoofing, pouco importavam à época: valia o espetáculo, a mise-en-scène da Justiça em trajes heroicos. Moro, que se imaginava um estrategista de longo alcance, aceitou o superministério da Justiça no governo que ajudara a eleger, sonhando com uma toga no Supremo. Mas subestimou o jogo ao qual se submetia: o poder, quando concedido por alguém como Bolsonaro, vem sempre com a ameaça implícita da obsolescência. Caiu em desgraça, e sua reputação, antes aureolada, hoje é pouco mais que um esboço mal-acabado de redenção.

Adélio, por sua vez, não teve escolha. Enquanto Villas Bôas e Moro agiram por cálculo ou convicção ideológica, ele parece movido por algo mais insondável — um delírio, talvez, ou um gesto de desespero. Seu crime foi real, mas seu impacto político ultrapassou em muito qualquer intenção que ele pudesse nutrir. E, ainda assim, é o único a pagar integralmente por seus atos. Enquanto os terroristas do 8 de Janeiro — muitos deles financiados, articulados e depois sumariamente descartados pelos mesmos que lucraram com o caos — recebem penas suaves ou sequer são tocados pela Justiça, Adélio cumpre sua sentença em isolamento quase absoluto. Não há campanhas por sua liberdade, tampouco discursos inflamados a evocá-lo como símbolo de qualquer coisa.

É curioso constatar que, sob certo prisma, ele foi o mais útil dos três. Villas Bôas assegurou a intimidação institucional; Moro, a eliminação do adversário principal; Adélio, porém, trouxe o elemento simbólico que faltava: o drama, o sangue, o sofrimento que legitima a narrativa de vitimização. E, anos depois, sempre que Bolsonaro se vê em apuros com a Justiça, lá está a velha fórmula: internações misteriosas, estados de saúde ambíguos, a encenação contínua de um homem acuado por forças obscuras. A facada, afinal, nunca perdeu sua utilidade.

Se há justiça em tudo isso, é daquelas que beiram o sadismo. Villas Bôas e Moro, cada qual a seu modo, colhem o que semearam: um, reduzido à condição de relíquia patética; o outro, à de pária hesitante. Adélio, porém, jamais teve sequer o direito à colheita. Apenas apodrece. Talvez porque, no fundo, tenha sido o único a realmente acreditar em alguma coisa — ainda que ninguém, nem mesmo ele, saiba ao certo no quê.

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